A Confissão de Fé de Westminster: Fundamento da Ortodoxia Reformada.

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Em meio ao frio intenso do inverno londrino de 1643, uma assembleia de teólogos se reunia sob os arcos góticos da histórica Abadia de Westminster. O som das discussões teológicas ecoava pelas mesmas paredes que testemunharam a coroação de monarcas britânicos por séculos. Enquanto o país estava mergulhado em uma guerra civil sangrenta, esses homens dedicavam-se a uma tarefa monumental: articular com precisão a fé reformada para as gerações vindouras. Como observou C.S. Lewis em sua obra “Cristianismo Puro e Simples”: “A teologia é como um mapa. Baseada na experiência de centenas de pessoas que realmente estiveram em contato com Deus, a teologia é a experiência prática mapeada.” A Confissão de Westminster seria exatamente isso: um mapa detalhado da fé reformada, desenhado por homens que dedicaram suas vidas ao estudo das Escrituras e à reflexão teológica.

1. Origens Históricas e Contexto da Assembleia de Westminster

A Confissão de Fé de Westminster não surgiu no vácuo. Ela emergiu em um período de turbulência política e religiosa sem precedentes na Inglaterra do século XVII. Por quase um século antes da assembleia, os puritanos,1 calvinistas ingleses devotos à pureza doutrinária e à simplicidade no culto, vinham lutando por uma reforma profunda na Igreja da Inglaterra (Anglicana),2 que ainda mantinha muitos elementos do catolicismo romano em sua liturgia e estrutura eclesiástica.

A década de 1640 testemunhou uma reviravolta dramática nos acontecimentos. O Parlamento inglês, agora dominado por puritanos, entrou em conflito direto com o rei Carlos I, que defendia ferozmente o sistema episcopal e resistia às reformas puritanas. Este conflito político-religioso escalou para a Guerra Civil Inglesa,3 um dos períodos mais traumáticos da história britânica.

Em 1643, aproveitando sua nova posição de poder, o Parlamento convocou a Assembleia de Westminster para reformular a doutrina, governo e liturgia da Igreja da Inglaterra. Como afirma B.B. Warfield:

“A Assembleia de Westminster não foi meramente um concílio eclesiástico; foi a expressão máxima do desejo puritano de reformar a igreja segundo o padrão bíblico. Estes homens acreditavam firmemente que a Palavra de Deus fornecia diretrizes não apenas para a salvação individual, mas para toda a estrutura e funcionamento da igreja de Cristo na terra. Seu trabalho foi, portanto, uma tentativa séria e erudita de articular essa visão.”

Esta observação de Warfield nos lembra que o trabalho da assembleia não foi apenas um exercício acadêmico, mas uma expressão profunda da convicção puritana de que a igreja precisava ser continuamente reformada de acordo com as Escrituras, “ecclesia reformata semper reformanda secundum verbum Dei”, “A Igreja reformada, sempre se reformando segundo a Palavra de Deus”. O contexto conturbado não diminuiu a profundidade teológica; ao contrário, talvez tenha intensificado a necessidade de clareza doutrinária em tempos de incerteza.

2. O Processo de Elaboração da Confissão

Imagem confissao fe Westminster debate Pintura da reunião da assembleia de Westminster em 1644
Reunião da Assembleia de Westminster em 21 de fevereiro de 1644. J. R. Herbert

A Assembleia foi composta por aproximadamente 120 ministros puritanos ingleses, aos quais se juntaram influentes representantes presbiterianos escoceses. Entre eles estavam alguns dos mais brilhantes teólogos da época, homens como Samuel Rutherford, George Gillespie, Thomas Goodwin e John Lightfoot, eruditos de vasto conhecimento bíblico e patrístico.

As deliberações foram caracterizadas por debates teológicos extensos e meticulosos. Cada artigo, cada frase, cada palavra da Confissão foi cuidadosamente examinada à luz das Escrituras. Os debates frequentemente duravam dias para resolver questões teológicas complexas, demonstrando o comprometimento desses homens com a precisão doutrinária.

Jonathan Edwards, referindo-se posteriormente ao trabalho da assembleia, escreveu:

“Os teólogos reunidos em Westminster demonstraram uma rara combinação de piedade e erudição. Não eram meros acadêmicos interessados em sutilezas teológicas, mas pastores comprometidos com o bem-estar espiritual do povo de Deus. Sua preocupação primordial era articular as verdades das Escrituras com fidelidade, para que a igreja pudesse ser edificada na verdade.” (Edwards, “História da Obra da Redenção”, p. 189)

Este comentário de Edwards captura algo essencial sobre a Assembleia: ela uniu erudição rigorosa com preocupação pastoral. Os teólogos presentes entendiam que a clareza doutrinária não era um fim em si mesma, mas um meio para a edificação dos fiéis e a glória de Deus.

Após extensos debates, o texto da confissão foi concluído no final de 1646, sendo posteriormente enriquecido com passagens bíblicas de apoio, culminando com a aprovação final pelo Parlamento em 1648. Seu título oficial era: “Artigos de religião cristã, aprovados e sancionados por ambas as casas do Parlamento, segundo o conselho da Assembleia de teólogos ora reunida em Westminster por autoridade do Parlamento”.

3. Influências Teológicas e Conteúdo Doutrinário

A Confissão de Westminster não surgiu “ex nihilo”, “do nada” mas se inseriu numa longa tradição teológica reformada. Embora baseada principalmente nos Os Artigos Irlandeses de Religião (1615), ela também absorveu influências significativas da tradição Reformada continental, especialmente de teólogos como João Calvino, Heinrich Bullinger e Teodoro de Beza, além de incorporar elementos dos credos da Igreja Cristã primitiva.

Como observa Herman Bavinck em sua Dogmática Reformada: “A Confissão de Westminster representa o ápice da teologia reformada em sua expressão mais madura e equilibrada. Ela consegue sintetizar não apenas o pensamento de Calvino, mas toda a tradição reformada que se desenvolveu nos cem anos após sua morte. Permanece como testemunho do desenvolvimento orgânico da teologia reformada, mostrando como as sementes plantadas pelos primeiros reformadores floresceram em uma articulação teológica abrangente e coerente.” (Bavinck, “Dogmática Reformada”, Vol. 1, p. 162)

A observação de Bavinck nos ajuda a compreender que a Confissão não foi uma inovação radical, mas o fruto maduro de um século de reflexão teológica reformada. Ela representa um consenso teológico do calvinismo internacional em sua formulação clássica.

Estruturada em 33 capítulos cuidadosamente organizados, a Confissão oferece uma articulação sistemática da fé reformada. Começa com a doutrina da Escritura como autoridade suprema “sola Scriptura”, avança para as doutrinas concernentes à Trindade e à pessoa e obra de Cristo, e desenvolve as visões distintivamente calvinistas sobre as alianças de Deus com o homem, a eleição, a justificação pela fé, a santificação, a perseverança dos santos, os sacramentos e o governo da igreja.

“O que torna a Confissão de Westminster tão notável é sua capacidade de articular doutrinas complexas com precisão, clareza e profundidade bíblica. Ela não apenas declara o que os reformados creem, mas fornece um fundamento bíblico para essas crenças. Cada afirmação teológica está ancorada nas Escrituras, demonstrando o compromisso dos autores com o princípio de sola Scriptura. Este não é um documento de especulações teológicas, mas uma articulação cuidadosa do ensino bíblico.” (Sproul, “Verdades Que Transformam”, p. 78) A característica central da Confissão é seu fundamento escriturístico. Os teólogos de Westminster não estavam interessados em filosofias humanas ou tradições eclesiásticas, mas em articular fielmente o que a Bíblia ensina sobre Deus, o homem, a salvação e a igreja.

4. Impacto Histórico e Adoção Global.

O impacto histórico da Confissão de Westminster foi imenso e duradouro. Embora nunca tenha sido implementada como pretendia o Parlamento inglês, devido à restauração da monarquia em 1660 e o retorno do episcopado à Igreja da Inglaterra, a Confissão encontrou lar permanente em outros lugares.

Foi adotada pela Igreja da Escócia em 1647, tornando-se o padrão doutrinário definidor do presbiterianismo escocês. Com a imigração escocesa-irlandesa para a América do Norte, a Confissão atravessou o Atlântico e foi adotada por várias denominações presbiterianas americanas, embora frequentemente com pequenas modificações, especialmente nas seções relativas ao papel do magistrado civil em assuntos religiosos.

Além disso, elementos da Confissão influenciaram significativamente as declarações de fé de denominações Congregacionais e Batistas Reformadas. A Confissão Batista de Londres de 1689, por exemplo, segue de perto a estrutura e conteúdo da Confissão de Westminster, com adaptações para refletir as distinções batistas em eclesiologia e batismo.

Segundo Charles Hodge, o renomado teólogo de Princeton: “A influência da Confissão de Westminster na história do protestantismo é incalculável. Ela forneceu um fundamento doutrinário sólido para igrejas em todo o mundo de língua inglesa e além. Sua articulação clara e abrangente da teologia reformada serviu como âncora doutrinária por séculos, preservando as igrejas da deriva teológica e do liberalismo. Poucas declarações doutrinárias na história cristã tiveram um impacto tão amplo e duradouro.” (Hodge, “Teologia Sistemática”, Vol. 3, p. 456)

A Confissão de Fé de westminster foi fundamental como instrumento de preservação da ortodoxia reformada desde a sua confecção. Em um mundo de rápidas mudanças teológicas e ideológicas, a Confissão serviu como uma âncora doutrinária para inúmeras igrejas ao redor do mundo.

Conclusão

Assim como os grandes catedrais góticas da Europa permaneceram como testemunhos arquitetônicos da fé através dos séculos, a Confissão de Westminster continua a ser um monumento teológico de precisão doutrinária e fidelidade bíblica.

Imagem Confissão de fé Panoramica da fachada da Abadia de Westminster
A Abadia de Westminster é uma das igrejas mais icônicas de Londres e um dos marcos históricos mais importantes do Reino Unido.

Em 1643, enquanto a Inglaterra estava dilacerada pela guerra civil, um grupo de teólogos se reuniu em Westminster para formular uma declaração doutrinária que serviria às gerações futuras. O resultado foi mais do que um documento histórico; foi uma articulação duradoura da fé reformada que continua a nutrir e guiar igrejas em todo o mundo. Como observou o historiador Philip Schaff: “A Confissão de Westminster, mais do que qualquer outro símbolo protestante, combina clareza teológica, precisão e abrangência.”

A Confissão de Westminster permanece como um testemunho eloquente da convicção reformada de que a verdade importa, que a doutrina precisa e deve ser articulada e preservada, e que a igreja de Cristo deve ser continuamente reformada de acordo com a Palavra de Deus. Em um mundo de relativismo teológico e indiferença doutrinária, a Confissão nos lembra que o que cremos sobre Deus molda profundamente como O adoramos e como vivemos.

Aplicação

A Confissão de Westminster não é meramente um artefato histórico a ser estudado com interesse acadêmico distante. Ela é um recurso vivo para a igreja contemporânea. Como herdeiros da tradição reformada, somos chamados a valorizar este rico patrimônio teológico, não como um substituto para as Escrituras, mas como um guia confiável para sua interpretação.

Negligenciar os grandes documentos confessionais da igreja é empobrecermos a nós mesmos. É como um filho que ignora as cartas de seus pais falecidos. Estas confissões representam a sabedoria acumulada de gerações que lutaram com as mesmas questões que enfrentamos hoje. Quando as lemos, nos colocamos humildemente na posição de aprendizes, reconhecendo que não somos os primeiros a tentar entender as Escrituras.

Que possamos, portanto, estudar a Confissão com humildade e discernimento, testando sempre suas afirmações pelas Escrituras, mas reconhecendo nela um tesouro de sabedoria teológica. Que ela nos ajude a “permanecer firmes e inabaláveis” (1 Coríntios 15:58) em um tempo de confusão doutrinária, e nos inspire a viver vidas que honrem a Deus que graciosamente se revelou a nós em Sua Palavra.

Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.

Referências Bibliográficas

Bavinck, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

Edwards, Jonathan. História da Obra da Redenção. São Paulo: Shedd Publicações, 2018.

Hodge, Charles. Teologia Sistemática. Vol. 3. São Paulo: Hagnos, 2001.

Lewis, C.S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Schaff, Philip. Credos da Cristandade. Vol. 3. Grand Rapids: Baker Books, 1998.

Sproul, R.C. Verdades Que Transformam. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.

Warfield, B.B. Os Significados de Westminster. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1972.

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  1. O puritanismo inglês foi um movimento reformador do século XVI e XVII dentro da Igreja da Inglaterra, buscando maior pureza doutrinária e moral, alinhada às Escrituras. Influenciado por João Calvino, os puritanos rejeitavam práticas católicas remanescentes no anglicanismo e enfatizavam a soberania de Deus, a autoridade bíblica e a vida piedosa. Enfrentaram perseguições sob monarcas como Jaime I e Carlos I, levando muitos a emigrar para a América. Durante a Revolução Inglesa, ganharam poder, mas foram reprimidos na Restauração. Seu legado influenciou igrejas reformadas, o pensamento político ocidental e o desenvolvimento da ética protestante do trabalho. ↩︎
  2. A Igreja da Inglaterra surgiu no século XVI, quando o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica em 1534, criando uma instituição nacional sob sua autoridade. Embora tenha mantido elementos católicos em sua liturgia, adotou doutrinas reformadas sob Eduardo VI e enfrentou perseguições sob Maria I, retornando ao anglicanismo com Elizabeth I. Tornou-se a igreja oficial do país, conciliando tradições católicas e protestantes. Durante os séculos seguintes, influenciou a teologia global e enfrentou divisões internas, como o movimento puritano. Hoje, é parte da Comunhão Anglicana, tendo milhões de seguidores no mundo. ↩︎
  3. A Guerra Civil Inglesa (1642–1651) foi um conflito entre o rei Carlos I e o Parlamento, resultante de disputas sobre autoridade política e religiosa. Os “cavaleiros” apoiavam o rei, defensor do direito divino dos monarcas, enquanto os “cabeças-redondas” defendiam um governo parlamentar mais forte. Oliver Cromwell liderou o Exército Novo Modelo, vencendo o rei, que foi capturado e executado em 1649. A monarquia foi abolida, e a Inglaterra tornou-se uma república sob Cromwell. Após sua morte, a monarquia foi restaurada em 1660 com Carlos II. A guerra moldou o futuro da monarquia constitucional britânica e do poder parlamentar. ↩︎

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