A Confissão de Fé de Westminster
Fundamento da Ortodoxia Reformada.
Imagine-se entrando naquele anfiteatro de pedra fria da Abadia de Westminster em 1643. O inverno londrino penetra até os ossos, e o ar carrega não apenas o frio, mas também a tensão de um país dilacerado por guerra civil. No entanto, sob aqueles arcos góticos seculares — os mesmos que testemunharam a coroação de reis e rainhas — algo extraordinário acontece. Um grupo de homens se reúne não para discutir estratégias militares ou alianças políticas, mas para contemplar o rosto de Deus nas Escrituras e traduzir essa visão em palavras precisas para as gerações vindouras.
Que tipo de homens abandonariam o conforto de seus lares e paróquias para empreender tal tarefa em meio ao caos? Homens que acreditavam, com profunda convicção, que a verdade importa — que as palavras sobre Deus moldam nosso relacionamento com Ele e uns com os outros. Como diria o salmista: “A tua palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho” (Salmo 119:105). Estes teólogos buscavam articular essa luz com clareza cristalina.
1. As Raízes Históricas e Contexto da Assembleia de Westminster
Seria um erro terrível — tão comum em nossa idade de inovação perpétua — imaginar que estes homens estavam tentando criar algo inteiramente novo. A verdadeira originalidade, como sabemos, não consiste em dizer algo que ninguém jamais disse, mas em dizer a verdade eterna de uma maneira que fale ao momento presente. Eles estavam, como anões sobre os ombros de gigantes, enxergando mais longe porque se apoiavam no trabalho daqueles que vieram antes.
Por quase um século antes daquela assembleia, os puritanos,1 aqueles “precisos” calvinistas ingleses com seu zelo pela pureza doutrinária e simplicidade no culto, vinham lutando para completar o que consideravam uma reforma inacabada na Igreja da Inglaterra (Anglicana).2 Tentavam, com dedicação fervorosa, remover os resquícios do catolicismo romano que persistiam como manchas em uma roupa lavada pela metade.
O ano de 1643 trouxe uma reviravolta nos acontecimentos. O Parlamento inglês, agora nas mãos dos puritanos, confrontava diretamente o rei Carlos I, defensor ferrenho do sistema episcopal e resistente às reformas. Não era apenas um conflito político, como nossa mentalidade moderna tentaria categorizar; era uma batalha sobre como Deus deveria ser adorado e como Sua igreja deveria ser organizada. Era, no sentido mais profundo, uma guerra por almas. Como afirma B.B. Warfield:
“A Assembleia de Westminster não foi meramente um concílio eclesiástico; foi a expressão máxima do desejo puritano de reformar a igreja segundo o padrão bíblico. Estes homens acreditavam firmemente que a Palavra de Deus fornecia diretrizes não apenas para a salvação individual, mas para toda a estrutura e funcionamento da igreja de Cristo na terra. Seu trabalho foi, portanto, uma tentativa séria e erudita de articular essa visão.”
Aproveitando sua recém-adquirida posição de influência, o Parlamento convocou a Assembleia para reformular não apenas alguns detalhes litúrgicos, mas toda a estrutura doutrinária e governamental da igreja nacional. Não é isso precisamente o coração do espírito reformado? Ecclesia reformata semper reformanda secundum verbum Dei — “A Igreja reformada, sempre se reformando segundo a Palavra de Deus”. Observe a beleza desse princípio: não é reforma pela reforma, nem mudança para acompanhar os caprichos culturais, mas reforma contínua de acordo com a Palavra imutável. É como um jardim bem cuidado, sempre sendo podado e cultivado segundo o design original do jardineiro.
2. A Forja da Doutrina: Debate, Oração e Estudo

Quão diferente era aquela assembleia das nossas conferências modernas! Aproximadamente 120 ministros puritanos ingleses, juntamente com influentes representantes presbiterianos escoceses, não se reuniram para palestras rápidas e painéis superficiais. Não buscavam “takeaways” práticos ou “hacks” ministeriais. Eles vinham preparados para longos dias de deliberação meticulosa, onde cada artigo, cada frase, cada palavra seria examinada à luz das Escrituras com o cuidado de um ourives inspecionando diamantes preciosos.
Você consegue vê-los debatendo por dias sobre uma única questão teológica? Quão estranho isso parece à nossa cultura de soundbites e tweets! Mas talvez seja precisamente essa estranheza que deveria nos fazer parar e refletir. Não temos, em nossa pressa perpétua, perdido algo vital? Não estamos, talvez, trocando a profundidade pela velocidade, a precisão pela conveniência?
Entre esses homens estavam alguns dos mais notáveis teólogos da época: Samuel Rutherford, com sua devoção ardente; George Gillespie, com sua mente afiada como uma espada; Thomas Goodwin, com sua profunda espiritualidade; e John Lightfoot, com seu vasto conhecimento rabínico. Não eram meros técnicos da teologia, dissecando verdades divinas com frieza clínica. Eram pastores, profundamente preocupados com as almas sob seus cuidados. Como médicos espirituais, sabiam que um diagnóstico preciso é o primeiro passo para uma cura eficaz.
Havia uma santa impaciência neles — não a impaciência febril de quem quer terminar logo para passar à próxima tarefa, mas a impaciência de quem vê a glorificação de Deus e o bem de Seu povo como questões demasiado importantes para serem tratadas com negligência. Eram homens que, como disse Agostinho, “amavam a Deus e faziam o que queriam” — porque o que queriam havia sido transformado pelo amor divino.
3. O Legado Doutrinal: Um Mapa para a Alma
A Confissão de Fé de Westminster não surgiu do nada, como Atena da cabeça de Zeus, totalmente formada e armada. Ela brotou do solo fértil da tradição reformada, absorvendo nutrientes dos trabalhos de Calvino, Bullinger e Beza, além de incorporar elementos dos credos da Igreja primitiva. Era como um grande rio, alimentado por diversos afluentes, fluindo com majestade crescente.
Quando nos debruçamos sobre seus 33 capítulos meticulosamente organizados, encontramos não um documento árido e técnico, mas um mapa da alma — um guia para a jornada do peregrino através do território acidentado da vida espiritual. Começa onde toda teologia genuína deve começar: com a revelação de Deus nas Escrituras. “Sola Scriptura” não era para eles um slogan vazio, mas o princípio vital que governava todo o seu pensamento.
A estrutura da Confissão de Fé de Westminster segue o ritmo da própria história da redenção: parte da majestade e soberania de Deus, move-se através da tragédia da queda humana, e então abre-se para a glória da redenção em Cristo. Detém-se nas doutrinas distintamente calvinistas: a eleição incondicional, aquele grande mistério do amor divino que escolhe pecadores sem mérito; a justificação pela fé, pela qual somos declarados justos não por obras, mas pela obra perfeita de Cristo recebida pela fé; a santificação progressiva, pela qual vamos sendo, dia após dia, transformados na imagem de Cristo; e a perseverança dos santos, pela qual somos preservados pelo poder de Deus até o fim.
Alguns modernos, com sua alergia a toda forma de autoridade, veem nestas doutrinas um sistema opressivo. Mas o que é realmente mais opressivo: ser deixado à mercê de nossas próprias inclinações pecaminosas, ou ser agarrado pelo amor implacável de um Deus que não nos soltará? Como disse São Agostinho: “Senhor, comanda o que queres, mas dá o que comandas.”
4. O Alcance Global: Das Ilhas Britânicas para o Mundo
É profundamente irônico — e profundamente divino em sua ironia — que este documento, nunca implementado como pretendia o Parlamento inglês devido à restauração da monarquia em 1660, tenha encontrado um lar permanente em tantos outros lugares ao redor do mundo. É como o grão de mostarda da parábola, aparentemente pequeno e insignificante, que cresce e se torna uma árvore onde muitas aves fazem seus ninhos.
Adotada pela Igreja da Escócia em 1647, a Confissão de Fé de Westminster cruzou o Atlântico com os imigrantes escoceses e irlandeses, plantando raízes profundas no solo americano. Suas formulações precisas serviram como âncora doutrinária para igrejas presbiterianas, congregacionais e batistas reformadas. Atravessou oceanos, escalou montanhas e penetrou selvas, levada não por conquistadores com espadas, mas por missionários com Bíblias, plantando sementes de ortodoxia reformada em lugares que os teólogos de Westminster jamais sonharam alcançar.
Segundo Charles Hodge, o renomado teólogo de Princeton: “A influência da Confissão de Westminster na história do protestantismo é incalculável. Ela forneceu um fundamento doutrinário sólido para igrejas em todo o mundo de língua inglesa e além. Sua articulação clara e abrangente da teologia reformada serviu como âncora doutrinária por séculos, preservando as igrejas da deriva teológica e do liberalismo. Poucas declarações doutrinárias na história cristã tiveram um impacto tão amplo e duradouro.” (Hodge, “Teologia Sistemática”, Vol. 3, p. 456)
Pense nisso por um momento: um documento produzido por homens de uma pequena ilha europeia, em um momento específico de sua história conturbada, falando agora às almas de cristãos na África, Ásia, Américas e Oceania. Não é isso um testemunho do poder atemporal da verdade bíblica, que, quando articulada com precisão e fidelidade, ressoa com os anseios mais profundos do coração humano através das eras e culturas?
Charles Spurgeon, aquele grande pregador batista do século XIX, embora não fosse estritamente presbiteriano, capturou essa qualidade transcultural quando disse: “A teologia da Confissão de Fé de Westminster representa o cristianismo em sua forma mais pura. Suas declarações são joias de clareza; suas definições são obras-primas de julgamento espiritual.”
A Confissão de Fé de westminster foi fundamental como instrumento de preservação da ortodoxia reformada desde a sua confecção. Em um mundo de rápidas mudanças teológicas e ideológicas, a Confissão serviu como uma âncora doutrinária para inúmeras igrejas ao redor do mundo.
Um Chamado às Profundezas
Assim como os grandes catedrais góticas da Europa permaneceram como testemunhos arquitetônicos da fé através dos séculos, a Confissão de Fé de westminster continua a ser um monumento teológico de precisão doutrinária e fidelidade bíblica.

E o que isso significa para nós hoje? Vivemos em uma época estranha — uma época que despreza o passado como irrelevante, enquanto permanece curiosamente ignorante dele; uma época que celebra a inovação por si só, sem perguntar se o novo é também verdadeiro. “Progresso” é nossa palavra de ordem, mas raramente paramos para perguntar: progresso em direção a quê?
A Confissão de Fé de westminster nos convida a uma abordagem diferente. Ela nos chama a reconhecer que não somos os primeiros a lutar com as grandes questões da existência. Não somos pioneiros no deserto teológico, mas peregrinos em uma estrada bem percorrida, com sinais claros deixados por aqueles que viajaram antes de nós.
Ler a Confissão de Fé de westminster é como sentar-se aos pés de mestres sábios. Não para aceitar cegamente cada palavra que dizem — pois eles mesmos nos instruiriam a testar tudo pelas Escrituras — mas para ouvir com humildade e discernimento. Quantas confusões teológicas, quantos desvios espirituais poderiam ser evitados se apenas prestássemos atenção aos mapas cuidadosamente desenhados por nossos antepassados espirituais!
“Oh, mas isso é tão antiquado!” exclama o espírito moderno. “Precisamos de algo relevante, algo ‘fresco’!” Mas o que é realmente mais relevante: as modas passageiras de nossa cultura efêmera, ou as verdades eternas sobre Deus, o homem e a salvação? Como disse G.K. Chesterton: “Tradição significa dar voz aos membros mais obscuros de toda a sociedade: nossos ancestrais.”
É possível que, em nossa busca frenética por novidade, tenhamos perdido tesouros de sabedoria acumulados ao longo de séculos? É possível que, como o filho pródigo, tenhamos desprezado a herança de nosso Pai, apenas para nos encontrarmos comendo com os porcos de doutrinas rasas e psicologias populares?
Talvez seja hora de voltarmos para casa, para os lugares profundos onde a verdade habita. Não com uma nostalgia romântica por eras passadas, mas com o reconhecimento sóbrio de que a sabedoria acumulada de gerações merece, no mínimo, uma audiência respeitosa.
Pois o que está em jogo não é apenas a correção teológica abstrata, mas a saúde de nossas almas. Doutrinas falsas não são apenas erros intelectuais — são venenos espirituais. Como disse o próprio Senhor Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). O inverso também é verdadeiro: o erro escraviza.
A Confissão de Fé de westminster permanece como uma catedral teológica, erguendo-se majestosa no horizonte da história da igreja. Como as grandes catedrais góticas, ela combina precisão arquitetônica com beleza inspiradora; rigor intelectual com devoção espiritual. E assim como aquelas catedrais foram construídas não para a glória dos arquitetos ou pedreiros, mas para a glória de Deus, também a Confissão foi elaborada não para exaltar a sabedoria humana, mas para glorificar o Deus que graciosamente se revelou em Sua Palavra. Nas palavras do hino de Isaac Watts:
A Ti, grande Deus, humildes graças rendemos,
Por todas as maravilhas que contemplamos;
Mas é em Tua Palavra que vemos a Ti mesmo,
Em linhas mais brilhantes e verdadeiras.
Que possamos, portanto, aproximar-nos deste rico patrimônio teológico não como arqueólogos escavando artefatos antigos, mas como herdeiros recebendo um tesouro inestimável. Que possamos estudar estas verdades não apenas com nossas mentes, mas com nossos corações, permitindo que elas formem não apenas nossas crenças, mas nossas vidas. E que possamos, como aqueles fiéis teólogos de Westminster, permanecer “firmes e inabaláveis, sempre abundantes na obra do Senhor” (1 Coríntios 15:58), sabendo que nosso trabalho no Senhor não é em vão.
Pois no final, a questão não é se aderimos a uma confissão particular, mas se conhecemos e adoramos o Deus vivo que ela procura descrever. Como C.H. Spurgeon observou tão eloquentemente: “Os credos são como mapas do oceano da verdade divina; úteis para navegação, mas o mapa não é o oceano.” A Confissão de Fé de westminster, em sua melhor expressão, não busca substituir as Escrituras ou competir com elas, mas nos guiar mais profundamente para suas verdades transformadoras.
Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.
Leia também:
A BÍBLIA É SUFICIENTE – Artigo I
Referências Bibliográficas
Bavinck, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
Edwards, Jonathan. História da Obra da Redenção. São Paulo: Shedd Publicações, 2018.
Hodge, Charles. Teologia Sistemática. Vol. 3. São Paulo: Hagnos, 2001.
Lewis, C.S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Schaff, Philip. Credos da Cristandade. Vol. 3. Grand Rapids: Baker Books, 1998.
Sproul, R.C. Verdades Que Transformam. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
Warfield, B.B. Os Significados de Westminster. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1972.
- O puritanismo inglês foi um movimento reformador do século XVI e XVII dentro da Igreja da Inglaterra, buscando maior pureza doutrinária e moral, alinhada às Escrituras. Influenciado por João Calvino, os puritanos rejeitavam práticas católicas remanescentes no anglicanismo e enfatizavam a soberania de Deus, a autoridade bíblica e a vida piedosa. Enfrentaram perseguições sob monarcas como Jaime I e Carlos I, levando muitos a emigrar para a América. Durante a Revolução Inglesa, ganharam poder, mas foram reprimidos na Restauração. Seu legado influenciou igrejas reformadas, o pensamento político ocidental e o desenvolvimento da ética protestante do trabalho. ↩︎
- A Igreja da Inglaterra surgiu no século XVI, quando o rei Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica em 1534, criando uma instituição nacional sob sua autoridade. Embora tenha mantido elementos católicos em sua liturgia, adotou doutrinas reformadas sob Eduardo VI e enfrentou perseguições sob Maria I, retornando ao anglicanismo com Elizabeth I. Tornou-se a igreja oficial do país, conciliando tradições católicas e protestantes. Durante os séculos seguintes, influenciou a teologia global e enfrentou divisões internas, como o movimento puritano. Hoje, é parte da Comunhão Anglicana, tendo milhões de seguidores no mundo. ↩︎

Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!
1 comentário