LIÇÃO 03: CARACTERÍSTICAS DE UM LÍDER CRISTÃO.
“O caráter do líder cristão não é formado instantaneamente, mas esculpido pacientemente na oficina da adversidade. A verdadeira autoridade do líder cristão não vem de sua posição, mas de seu caráter semelhante a Cristo. A santidade não é uma opção para o líder cristão, mas o fundamento indispensável para toda influência duradoura.”
Palavra-chave: Características de um Líder Cristão
Texto básico: Hebreus 13:15-19. “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome. Não se esqueçam da prática do bem e da mútua cooperação, pois de tais sacrifícios Deus se agrada. Obedeçam aos seus líderes e sejam submissos a eles, pois zelam pela alma de vocês, como quem deve prestar contas. Que eles possam fazer isto com alegria e não gemendo; do contrário, isso não trará proveito nenhum para vocês. Orem por nós, pois estamos certos de que temos a consciência limpa, querendo em todas as circunstâncias fazer o que é correto. Peço, com insistência, que vocês façam isto, para que eu lhes seja restituído o mais depressa possível”.
Leituras complementares:
- 1 Timóteo 3:1-7. Apresenta as qualificações essenciais para líderes na igreja de Cristo.
- Tito 1:5-9. Define os requisitos de caráter para aqueles que lideram o povo de Deus.
- 2 Timóteo 2:15. Ilustra o compromisso do líder com a verdade da Palavra.
- 1 Pedro 5:1-4. Mostra o modelo de pastoreio baseado no exemplo de Cristo.
- Filipenses 2:1-11. Apresenta a humildade de Cristo como paradigma para toda liderança.
- João 13:1-17. Revela o serviço como essência da liderança segundo Jesus.
- Provérbios 4:23. Enfatiza a importância da integridade interior para a liderança eficaz.
Em um mundo onde escândalos de liderança se tornam manchetes diárias, onde executivos corporativos, líderes políticos e até ministros religiosos caem em desgraça por falhas morais, a questão do caráter torna-se central para entendermos a liderança que Deus abençoa. Consideremos esta ilustração:
Durante a Segunda Guerra Mundial, o general Dwight D. Eisenhower enfrentou uma decisão crucial antes do Dia D. As condições meteorológicas eram desfavoráveis, mas adiar o desembarque na Normandia poderia comprometer toda a operação. Antes de decidir, reuniu-se com seus comandantes e, após ouvir atentamente as opiniões, assumiu total responsabilidade pela decisão final. Embora tenha ordenado o avanço, Eisenhower redigiu uma carta assumindo toda a culpa caso a operação fracassasse. Esse episódio revela um aspecto fundamental da liderança: o caráter íntegro que inspira confiança e assume responsabilidade.
Da mesma forma, a liderança cristã eficaz está fundamentada não em técnicas ou métodos, mas no caráter do líder formado à semelhança de Cristo. Como afirma Stephen Covey: “Gerenciamento é fazer as coisas de uma forma correta. Liderança é fazer as coisas corretas. Gerenciamento é eficiência subindo a escada do sucesso; liderança determina se a escada está posta contra a parede certa” (Covey, 1990, p. 101).
Nossa passagem em Hebreus 13:15-19 oferece um vislumbre poderoso dos princípios que moldam o caráter do líder cristão e fundamentam uma liderança que agrada a Deus.
EXPLICAÇÃO DO TEXTO BÁSICO
Hebreus 13:15-19 se situa na parte final da epístola, onde o autor apresenta importantes exortações práticas que derivam dos ensinamentos teológicos anteriores. Este texto aborda aspectos essenciais do caráter e das responsabilidades tanto dos líderes quanto daqueles que estão sob liderança na comunidade cristã.
Contexto histórico: A Epístola aos Hebreus foi escrita para cristãos de origem judaica que enfrentavam perseguição e a tentação de retornar às práticas da antiga aliança. Muitos estudiosos situam a carta entre os anos 60-70 d.C., antes da destruição do Templo de Jerusalém. Os destinatários estavam sob pressão social e religiosa, e o autor os exorta a permanecerem firmes na fé em Cristo, apresentando-o como superior a todas as instituições da antiga aliança.
Contexto literário: Nossa passagem encontra-se no capítulo conclusivo, após uma extensa explanação sobre a superioridade de Cristo e do novo pacto. Nos versículos anteriores (13:10-14), o autor havia mencionado o sacrifício de Cristo “fora das portas”, estabelecendo a base para as exortações que seguem.
Termos específicos:
- Sacrifício de louvor (v.15) – O termo grego thysia aineseos refere-se ao sacrifício de ação de graças do Antigo Testamento (Levítico 7:12), agora reinterpretado no contexto cristão como louvor verbal e testemunho.
- Fruto dos lábios (v.15) – Expressão que deriva de Oséias 14:2, indicando palavras de louvor e gratidão oferecidas a Deus.
- Guias/Líderes (v.17) – Em grego, hegoumenoi, refere-se aos líderes da comunidade cristã, aqueles que tinham responsabilidade espiritual sobre os crentes.
Geografia relevante: Embora o texto não mencione localidades específicas, há uma referência implícita à disposição geográfica do sistema sacrificial judaico, contrastando o santuário terreno com a nova realidade espiritual instituída por Cristo.
O autor demonstra que o sacrifício singular de Jesus Cristo suspendeu toda a ordem sacrificial do Antigo Testamento, inaugurando um novo tipo de serviço sacrificial. Este novo paradigma não se baseia em rituais externos, mas manifesta-se na vida cotidiana dos cristãos através da oração, do testemunho, do amor prático ao próximo e da obediência. O sacrifício de gratidão e louvor, instituído no Antigo Testamento (Levítico 7:12), não é abolido no Novo Testamento, mas assume uma nova configuração exterior.
No texto, o apóstolo estabelece uma conexão indissolúvel entre doutrina correta e prática apropriada, entre testemunho verbal e conduta de vida. As obras de amor cristão, embora não possuam caráter expiatório ou meritório (pois Cristo já realizou a expiação definitiva), continuam sendo sacrifícios agradáveis a Deus. O autor enfatiza que o amor ao Senhor e o amor ao próximo formam uma unidade inseparável.
Nos versículos 17-19, o foco se volta para a relação entre os líderes e os membros da comunidade. O apóstolo exorta os crentes a obedecerem a seus guias, reconhecendo que estes possuem uma responsabilidade especial e um dia prestarão contas a Deus pelas almas sob seus cuidados. Esta obediência não deve ser forçada, mas proveniente de convicção interior e amor fraternal.
O texto conclui com um pedido de oração, destacando a importância da intercessão pelos líderes. O autor afirma ter boa consciência e o desejo de viver de modo irrepreensível, enfatizando que a vida pessoal do líder deve ser moldada pela Palavra de Deus e pelo poder do Espírito Santo para que haja ordem fraterna e responsabilidade conjunta na comunidade cristã.
1. O fundamento do caráter na liderança cristã
A liderança fundamentada na confiança
A liderança cristã genuína repousa sobre o alicerce de uma vida que está em Cristo e de um caráter moldado por Deus. Para ser eficaz e abençoada, ela exige não apenas competência ou habilidades estratégicas, mas sobretudo credibilidade moral. Essa credibilidade se traduz em confiança — um vínculo delicado que não se conquista por decreto, mas que é forjado lentamente ao longo do tempo pela consistência entre o que se prega e o que se vive.
Herman Bavinck, ao tratar da formação do caráter, enfatiza que ele é “o resultado de princípios que se transformaram em hábitos pela repetição consistente de ações” (Nossa Fé Razoável, 2017, p. 142). Em outras palavras, o caráter cristão não é um dom instantâneo, mas o fruto maduro de um coração disciplinado pela Palavra e sensível à obra santificadora do Espírito Santo. O apóstolo Paulo reforça essa ideia ao escrever a Timóteo:
“Ninguém despreze a tua mocidade; pelo contrário, torna-te padrão dos fiéis, na palavra, no procedimento, no amor, na fé, na pureza” (1Tm 4.12).
Aqui, Paulo não está apenas dando um conselho prático ao jovem pastor, mas lançando um princípio perene: a autoridade na liderança cristã não emana da idade ou posição, mas do exemplo visível de um caráter alinhado à verdade do evangelho. Essa visão encontra eco profundo na tradição reformada. João Calvino, comentando sobre o papel dos presbíteros e ministros, afirma que “ninguém está apto para o ofício pastoral a menos que, com seu exemplo, seja um espelho de piedade, integridade e sobriedade” (Institutas da Religião Cristã, IV.3.6). Para Calvino, o líder não é apenas um instrutor da verdade, mas alguém cujo modo de vida dá credibilidade à mensagem que prega.
Michael Horton, em sua obra A Fé Cristã, argumenta que a autoridade espiritual deve sempre estar subordinada ao evangelho: “A igreja é chamada a reconhecer líderes cuja autoridade se manifesta não pelo domínio, mas pela fidelidade à Palavra e pela humildade em servir” (Horton, The Christian Faith, 2011, p. 864). Isso significa que a influência cristã é exercida por meio da coerência entre caráter e ensino, e não pela imposição autoritária.
Em um mundo acostumado a líderes carismáticos porém moralmente inconsistentes, a liderança cristã oferece um contraste radical: ela é silenciosa, firme, servidora e confiável. A confiança dos fiéis não é conquistada com discursos eloquentes, mas com atitudes que refletem Cristo em cada detalhe da vida. Jonathan Edwards, por sua vez, ensinava que a santidade visível na vida de um líder é a maior evidência de que ele foi realmente chamado por Deus:
“A verdadeira religião, em grande parte, consiste nos santos afetos. E estes, quando operados genuinamente pelo Espírito, moldam a conduta visivelmente” (Religious Affections, 1746).
Portanto, o caráter do líder cristão não é apenas um requisito ético, mas uma resposta obediente à santificação operada pelo Espírito, e um instrumento por meio do qual Deus comunica sua verdade ao povo. Ele lidera não por imposição, mas por inspiração. Não porque exige ser seguido, mas porque sua vida, enraizada em Cristo, torna-se digna de ser imitada (cf. 1Co 11.1).
A diferença entre gerenciamento e liderança
Muitos confundem liderança com gerenciamento, mas as Escrituras e a tradição reformada nos ensinam que essas são vocações distintas. Stephen Covey capta bem essa diferença ao afirmar:
“Gerenciamento é fazer as coisas de uma forma correta. Liderança é fazer as coisas corretas. Gerenciamento é eficiência subindo a escada do sucesso; liderança determina se a escada está posta contra a parede certa” (Covey, Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes, 1990, p. 101).
Essa distinção, à primeira vista pragmática, ecoa profundamente a sabedoria bíblica. Em Hebreus 13.17, os líderes espirituais são descritos como aqueles que “velam por vossa alma, como quem deve prestar contas”. Não basta administrar bem os recursos ou organizar eficientemente a igreja; a liderança cristã está intrinsecamente ligada à responsabilidade eterna de conduzir o povo à maturidade em Cristo.
D.A. Carson reforça esse princípio ao lembrar que o líder e pastor cristão não é um executivo corporativo, mas “um homem de Deus cujo caráter e conduta refletem o Mestre a quem serve” (Memoirs of an Ordinary Pastor, 2008, p. 173). Sua função não é apenas manter o maquinário da igreja funcionando, mas garantir que o rebanho esteja sendo conduzido na direção correta — na direção da fidelidade, da verdade e da glória de Deus.
A teologia reformada também oferece uma crítica perspicaz a qualquer concepção de liderança desconectada da vocação espiritual. Herman Bavinck, em sua Dogmática Reformada, ensina que a vida cristã — incluindo seus aspectos públicos e administrativos — deve ser governada pela soberania de Deus em todas as esferas (Bavinck, Dogmática Reformada, vol. 1, p. 294). Assim, a liderança eclesiástica não pode ser reduzida a técnicas de gestão, pois seu fundamento está na submissão à Palavra e no serviço sacrificial à igreja de Cristo.
John Stott, refletindo sobre a crise de liderança na igreja contemporânea, argumenta que a verdadeira liderança espiritual “é moldada não pela pressão dos resultados, mas pela cruz de Cristo” (The Cross of Christ, 1986). O líder cristão é chamado a conduzir não por força ou manipulação, mas pelo exemplo de amor, humildade e integridade. O apóstolo Paulo, em sua instrução a Timóteo, dá ênfase não à eficiência administrativa, mas à fidelidade moral e doutrinária:
“Ora, é necessário que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, temperante, sóbrio, modesto, hospitaleiro, apto para ensinar” (1Tm 3.2).
A competência técnica tem seu lugar, mas está subordinada à formação de um caráter que reflete a santidade de Deus e o zelo pela edificação da Igreja.
John Piper, no livro Brothers, We Are Not Professionals, reforça essa diferença com vigor reformado:
“O pastor não é chamado a ser um gerente de negócios eclesiásticos, mas um homem consumido por Deus, que anseia pela glória de Cristo em tudo. O profissionalismo não é o chamado do evangelho — a piedade é” (Piper, 2002, p. 1).
Portanto, a liderança cristã, na perspectiva reformada, é uma vocação profundamente espiritual, que transcende os parâmetros do gerenciamento secular. Enquanto o gerente organiza e otimiza processos, o líder cristão discerne, guia e vela com temor por vidas eternas. A escada da liderança, como disse Covey, deve estar encostada na parede certa — e para o cristão, essa parede é a cruz de Cristo.
Que características de caráter você identifica nos líderes em quem você mais confia? Como podemos distinguir entre alguém que apenas gerencia pessoas e alguém que verdadeiramente lidera?
2. Características indispensáveis no caráter do líder cristão
Santidade: um compromisso com a integridade
A santidade não é apenas uma qualidade desejável para o líder cristão — ela é a primeira exigência, o fundamento indispensável sobre o qual repousa toda autoridade espiritual. Liderar o povo de Deus sem santidade é como tentar guiar um navio sem leme: pode haver força e estrutura, mas falta direção. Na perspectiva reformada, essa santidade não é meramente externa, mas nasce de uma transformação interior operada pelo Espírito Santo, que conduz o homem a uma vida de piedade autêntica e integridade moral. João Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã, define bem o coração da verdadeira piedade:
“A verdadeira piedade não consiste em um temor servil que odeia a Deus como um juiz severo, mas em um amor puro e sincero que o abraça como Pai” (Inst. I.II.2).
Este amor filial conduz o crente — e especialmente o líder — a viver diante de Deus (coram Deo), com um coração sensível ao pecado e comprometido com a verdade. A santidade, para Calvino, não é um estado estático, mas uma vida constantemente inclinada para Deus, marcada pela mortificação do pecado e pela renovação contínua no Espírito (Inst. III.III.8-10). Essa consciência da santidade divina é o que transforma o servo comum num líder preparado para a missão. Quando Isaías viu o Senhor “assentado sobre um alto e sublime trono” (Is 6.1), sua reação imediata foi:
“Ai de mim! Estou perdido, porque sou homem de lábios impuros…” (Is 6.5).
A visão da glória de Deus revelou sua própria corrupção e o levou a um quebrantamento profundo. Só depois disso é que Isaías foi purificado e enviado como profeta. A liderança, portanto, nasce da humilhação diante da santidade de Deus e de uma experiência radical de graça. R.C. Sproul, em sua obra The Holiness of God, ecoa essa verdade ao dizer:
“O maior trauma da vida de Isaías foi também o maior privilégio: ver a santidade de Deus. Porque ninguém pode contemplar a Deus e sair indiferente. Ser tocado pelo Santo é ser transformado para sempre” (Sproul, 1985, p. 38).
No mesmo espírito, Jonathan Edwards ensinava que a verdadeira santidade consiste em uma beleza moral e espiritual que nasce do amor pela perfeição de Deus. Para Edwards, santidade é “a centelha da beleza divina acesa no coração do regenerado” (Religious Affections, 1746). Essa santidade se manifesta em integridade pessoal — uma vida indivisa, coerente, transparente. O apóstolo Pedro exorta os crentes a viverem de modo exemplar mesmo em meio à oposição:
“Mantende exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que… observando-vos em vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação” (1Pe 2.12).
Na tradição reformada, integridade é mais que honestidade — é a alinhada harmonia entre o que o homem é diante de Deus e o que ele demonstra diante dos homens. É o viver em uníssono com a Palavra, em que o coração, os lábios e as ações expressam o mesmo compromisso com a verdade. Como afirma Michael Horton, a integridade cristã é o fruto da justificação que se traduz em santificação:
“Somos aceitos por Deus pela justiça de Cristo, mas somos conformados à imagem de Cristo pela operação contínua do Espírito” (The Gospel-Driven Life, 2009, p. 189).
Além disso, Herman Bavinck nos lembra que a santidade não é uma fuga do mundo, mas uma consagração a Deus no mundo:
“Ser santo é ser separado do pecado e consagrado a Deus — não numa torre de marfim, mas no coração das responsabilidades humanas” (Dogmática Reformada, vol. 4, p. 252).
Portanto, a liderança cristã exige mais do que habilidades; exige um coração que pulsa no ritmo da santidade de Deus. Não há substituto para isso. A autoridade espiritual só é legítima quando flui de uma vida profundamente enraizada em Cristo, moldada por Sua Palavra e constantemente purificada pelo Espírito. Integridade e santidade não são apenas requisitos para liderar — são a própria essência de uma liderança que glorifica a Deus e edifica o povo.
Plenitude do Espírito: poder para servir
Ser “cheio do Espírito” (At 6:3) é mais do que uma qualificação espiritual — é a própria essência da liderança cristã autêntica. Não se trata de um mero estado emocional ou de uma experiência extática, mas de uma vida radicalmente submissa ao governo do Espírito Santo, cuja presença capacita o servo de Deus a exercer liderança com poder, humildade e eficácia espiritual. R.C. Sproul nos lembra com propriedade:
“A plenitude do Espírito não é primariamente uma experiência emocional, mas uma condição de submissão à vontade de Deus e ao domínio do Espírito em todas as áreas da vida” (Sproul, 2010, p. 87).
Essa plenitude é, portanto, uma disposição interior constante de dependência, em que o líder se curva diante da soberania divina, buscando sensibilidade à voz do Espírito e fortaleza para agir em fidelidade. Na tradição reformada, a plenitude do Espírito é inseparável da Palavra de Deus. Como enfatiza Martyn Lloyd-Jones, ser cheio do Espírito é ser dominado por Ele através das Escrituras:
“O Espírito e a Palavra nunca se separam. Onde há plenitude do Espírito, há amor à verdade revelada, obediência e santidade” (Joy Unspeakable, 1984).
A plenitude do Espírito se manifesta em três grandes dimensões da liderança cristã:
A. Coragem espiritual
A presença do Espírito transforma homens comuns em testemunhas intrépidas. Pedro, antes tímido diante de uma serva (Lc 22:56-57), levanta-se no Pentecostes e prega com autoridade (At 2:14), e, depois, confronta com firmeza o Sinédrio (At 4:8-13). A plenitude do Espírito remove o temor dos homens, substituindo-o por uma ousadia santificada que proclama Cristo sem vacilar. Como declarou João Calvino,
“Não é possível que aquele que é cheio do Espírito de Cristo permaneça calado, pois o Espírito é uma chama que arde e impele à proclamação” (Comentário de Atos).
B. Zelo evangelístico
Em Filipe, vemos o impacto missionário da plenitude do Espírito. Ele desce a Samaria não apenas com palavras, mas com poder, e a cidade se enche de alegria (At 8:5-8). O Espírito leva Filipe ao eunuco etíope (At 8:29), mostrando como o impulso missionário é fruto direto da condução divina.
Herman Bavinck, falando sobre a obra do Espírito, afirmou:
“O Espírito Santo é o agente do novo nascimento e da nova criação. É Ele quem move, convence, transforma e envia” (Dogmática Reformada, vol. 4, p. 430).
C. Dependência da orientação divina
Líderes cheios do Espírito não tomam decisões apenas por lógica humana ou gestão estratégica. Eles buscam direção pela oração e pela Palavra, como vemos nos apóstolos ao escolherem os sete (At 6:3), ou na separação de Barnabé e Paulo para a missão (At 13:2). A liderança espiritual exige discernimento espiritual, fruto de comunhão constante com o Espírito. Michael Horton, em sua teologia prática, comenta:
“Ser cheio do Espírito é andar em constante sintonia com a vontade de Deus, o que exige escuta, sensibilidade e dependência” (The Gospel Commission, 2011, p. 210).
Essa dimensão é vívida no exemplo de George Whitefield, descrito por Wesley L. Duewel:
“Desde que começou a pregar, como jovem, até o fim da sua incrível carreira, sua alma foi uma chama de zelo ardente pela salvação dos homens” (Duewel, 1989, p. 30).
Whitefield, como tantos outros líderes ungidos ao longo da história, demonstrava que a plenitude do Espírito não é passividade mística, mas energia incansável em favor da glória de Cristo.
Na perspectiva reformada, a plenitude do Espírito é o poder interior que sustenta o caráter, a missão e a autoridade do líder cristão. Ela molda corações humildes, enche lábios com a verdade e fortalece mãos para servir. O líder cheio do Espírito vive com os pés no chão da realidade e os olhos no céu da eternidade, conduzindo o povo não pela força do braço, mas pelo sopro do Espírito. Como bem disse Jonathan Edwards:
“Quando Deus está prestes a realizar algo grande, Ele começa por derramar um espírito de oração”.
E onde há oração, há dependência. E onde há dependência, ali se manifesta a plenitude. O líder cristão não pode viver — e muito menos liderar — sem esse sopro divino. Pois servir a Deus com eficácia é impossível sem a capacitação do Espírito Santo.
Como você avalia sua própria sensibilidade ao pecado e dependência do Espírito Santo? Que áreas de sua vida precisam ser mais submetidas ao controle do Espírito?
3. Sabedoria e fé: pilares da liderança segundo Deus
Sabedoria celestial versus inteligência terrena
A sabedoria foi um dos critérios essenciais para a escolha dos sete primeiros diáconos da Igreja primitiva: “Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria” (Atos 6:3). Isso já nos aponta que a liderança no Reino de Deus não é atribuída com base em habilidades administrativas ou intelecto natural, mas sim na manifestação de uma sabedoria que vem do alto, oriunda do temor do Senhor (Pv 9:10). Tiago, irmão do Senhor, estabelece de forma clara a distinção entre dois tipos de sabedoria:
“A sabedoria, porém, lá do alto é, primeiramente, pura; depois, pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento” (Tiago 3:17).
Essa sabedoria celestial é caracterizada não por astúcia ou retórica, mas por pureza moral, humildade relacional e frutos espirituais, revelando-se no caráter e na conduta daqueles que a possuem.
A. Sabedoria como discernimento espiritual
Michael Horton, em Cristianismo Cotidiano, destaca que:
“A sabedoria cristã não é meramente conhecimento intelectual, mas discernimento prático fundamentado na revelação divina e aplicado nas complexidades da vida diária” (Horton, 2004, p. 214).
Esse tipo de sabedoria é precisamente o oposto do saber técnico ou da inteligência mundana que visa o sucesso, o poder ou o prestígio. Na tradição reformada, a sabedoria é inseparável da Palavra de Deus e do temor do Senhor. Como afirmou João Calvino:
“A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento de Deus e de nós mesmos” (Institutas, I.1.1).
Dessa forma, o conhecimento não é um fim em si mesmo, mas um meio para viver de forma santa, prudente e dependente de Deus.
B. O exemplo de Daniel: sabedoria como coragem moral e dependência divina
A vida de Daniel é um retrato vívido da sabedoria do alto. Quando se recusou a se contaminar com os manjares do rei, ele não agiu por arrogância, mas com prudência e fé, propondo um teste sábio (Dn 1:12-15). Mais tarde, enfrentou um decreto que proibia a oração, mas permaneceu firme, orando como sempre fizera (Dn 6:10), revelando que sua lealdade a Deus estava acima de qualquer cálculo político. Ao declarar a Nabucodonosor:
“Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão” (Dn 4:35),
Daniel nos recorda que a verdadeira sabedoria reconhece a soberania absoluta de Deus sobre toda a história e sobre todos os reinos humanos.
Essa teologia da sabedoria enraizada na soberania de Deus é o coração do pensamento reformado. Herman Bavinck escreve:
“Toda verdadeira sabedoria consiste em ajustar-se ao propósito soberano e bom de Deus revelado em Sua criação e em Sua Palavra” (Dogmática Reformada, vol. 2, p. 246).
C. Sabedoria prática versus racionalismo secular
A tradição reformada sempre manteve uma visão crítica do racionalismo secular, que idolatra a mente humana como autossuficiente. Como advertiu Abraham Kuyper:
“Não há um centímetro quadrado em toda a existência humana sobre o qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘É meu!’”
Logo, a inteligência terrena, quando desligada de Cristo, torna-se uma forma de idolatria — uma torre de Babel erguida contra o conhecimento de Deus (cf. Rm 1:22).
Para Jonathan Edwards, o homem sábio é aquele cujo coração está alinhado à glória de Deus:
“A verdadeira sabedoria consiste em escolher os melhores fins e empregar os meios mais adequados para alcançá-los”.
E qual é o fim último? Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre.
C. Sabedoria revelada em Cristo
A maior expressão da sabedoria divina é a encarnação de Cristo. Como afirma Paulo:
“Cristo é para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção” (1 Co 1:30).
A cruz, loucura para os que perecem, é na verdade o ápice da sabedoria divina (1 Co 1:23-25).
Nesse sentido, o líder cristão — e todo crente — deve se moldar a essa sabedoria cruciforme: humilde, sacrificial e dependente.
A diferença entre sabedoria celestial e inteligência terrena não é meramente de grau, mas de natureza e origem. Enquanto a inteligência terrena busca sucesso, status e controle, a sabedoria do alto busca pureza, humildade e submissão à vontade de Deus. No pensamento reformado, essa sabedoria é cultivada pela meditação contínua nas Escrituras, oração dependente e obediência perseverante. Como nos lembra Calvino,
“A Palavra de Deus é a escola da verdadeira sabedoria” (Institutas, I.VI.2).
Portanto, mais do que acumular diplomas ou impressionar com raciocínio, o líder cristão deve suplicar por sabedoria do alto, pois só ela capacita para discernir o bem, resistir ao mal e conduzir outros no caminho da vida.
Fé que persevera nas adversidades
A vida cristã não é marcada pela ausência de sofrimento, mas pela presença de uma fé que suporta, cresce e brilha em meio às tribulações. A Escritura nos oferece um exemplo notável em Estêvão, o primeiro mártir cristão, descrito como “homem cheio de fé e do Espírito Santo” (Atos 6:5). Sua morte, registrada em Atos 7, não é o retrato de um fracasso, mas o testemunho vívido de uma fé que contempla a glória de Deus mesmo sob pedradas.
A. Estêvão: fé enraizada na soberania de Deus
Ao apresentar sua defesa diante do Sinédrio, Estêvão não apelou à autopreservação, mas reinterpretou a história de Israel à luz da soberania divina. Ele enxergava cada ato redentivo como parte de um plano eterno e imutável de Deus (Atos 7). Ele entendeu que, mesmo os momentos de rejeição e sofrimento — como os de José, Moisés e os profetas — estavam sob o controle do Altíssimo. Essa cosmovisão reformada — que vê todas as coisas subordinadas ao conselho da vontade de Deus (Ef 1:11) — sustentou Estêvão com coragem e esperança em meio à morte violenta. Como escreve Calvino:
“Nada ocorre, senão por ordem secreta de Deus. […] É uma doce consolação saber que somos guardados pelo seu propósito eterno.” (Institutas, I.XVII.1)
B. A fé como confiança cordial e transformadora
Jonathan Edwards, em seu sermão Uma Fé Divina e Sobrenatural, ensina que:
“A verdadeira fé em Cristo não é meramente uma persuasão intelectual, mas uma confiança cordial que transforma o coração e renova a vida” (Edwards, Obras, Vol. 2, p. 583).
A fé que persevera, portanto, não é mera crença em doutrinas corretas. É uma confiança viva, gerada pelo Espírito Santo, que molda as afeições e orienta a vontade rumo a Deus. O reformador Martinho Lutero ecoa essa ideia ao dizer:
“A fé é uma confiança viva e ousada na graça de Deus, tão certa que um homem morreria mil mortes por ela.”
Estêvão não apenas conhecia a doutrina da ressurreição — ele viu o Filho do Homem em pé à direita de Deus (At 7:56), e sua fé abraçou essa visão como realidade presente. Não se tratava de um ideal abstrato, mas de uma confiança real que sustentava sua alma no vale da morte.
C. Paulo e a pedagogia da aflição
O apóstolo Paulo, que mais tarde seria profundamente marcado pela morte de Estêvão, descreve sua própria experiência de tribulação em 2 Coríntios 1:8-9:
“Foi acima das nossas forças, a ponto de desesperarmos até da própria vida… para que não confiássemos em nós, e sim no Deus que ressuscita os mortos.”
A fé verdadeira aprende, no fogo da aflição, a desconfiar de si mesma e a depender unicamente de Deus. No pensamento reformado, essa dependência não é resignação, mas adoração ativa diante da soberania divina. Como diz Herman Bavinck:
“A fé cristã vê a mão de Deus não apenas na criação e redenção, mas também nas dores da vida, pois estas nos conduzem de volta a Ele.” (Dogmática Reformada, vol. 4, p. 276).
D. Fé perseverante é dom e fruto
A fé que permanece é dom de Deus (Ef 2:8-9) e também fruto de sua contínua operação no crente. A Confissão de Fé de Westminster (XIV.1) afirma que essa fé salvadora é obra do Espírito de Cristo e cresce por meio da Palavra, dos sacramentos e da oração. Na perspectiva reformada, o sofrimento não destrói a fé: ele purifica, fortalece e prova sua autenticidade. Como Tiago escreve:
“A provação da vossa fé produz perseverança” (Tg 1:3).
E Pedro declara:
“Para que, uma vez confirmada, a vossa fé — muito mais preciosa do que o ouro perecível — redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo” (1 Pe 1:7).
A fé de Estêvão, de Paulo e dos santos da história é uma fé escatológica, que olha para além das circunstâncias e repousa na promessa de que Deus é fiel e soberano. Essa fé crê contra a esperança, ama quando odiada, e persevera quando esmagada. Como diz o autor de Hebreus:
“Todos estes morreram na fé… confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra” (Hb 11:13).
A fé que persevera nas adversidades é o selo da verdadeira regeneração. Ela prova que fomos enxertados em Cristo e que pertencemos àqueles a quem o Senhor sustentará até o fim (Fp 1:6). Nas palavras de R.C. Sproul: “Não é a quantidade de fé que salva, mas a fidelidade do objeto da fé. Cristo nunca falha.”
Em que áreas de sua liderança você precisa buscar mais sabedoria divina? Como sua fé tem sido testada e fortalecida através de adversidades?
4. Amor e serviço: a essência da liderança cristã
Amor que se sacrifica
O amor cristão não é um mero afeto sentimental ou disposição cordial — é uma entrega voluntária e sacrificial de si mesmo em favor do outro. Na teologia reformada, o amor não é apenas um atributo de Deus, mas a essência do relacionamento entre o Criador e sua criação redimida (1 Jo 4:8-10). Assim como Deus amou o mundo de tal maneira que deu (Jo 3:16), também nós somos chamados a amar de maneira que doa, sirva e morra — se necessário.
A. O amor como fundamento da liderança cristã
Jesus ensina que o discipulado exige negação de si mesmo e cruz:
“Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue dia a dia, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a vida por minha causa, esse a salvará” (Lc 9:23-24).
Aqui, o chamado não é apenas para suportar sofrimento, mas para abraçar um estilo de vida cruciforme, onde o amor nos move a entregar tudo — inclusive a própria vida — por Cristo e pelo próximo. O pastor John Owen escreveu:
“Cristo não morreu para que seus seguidores vivessem confortavelmente, mas para que vivessem para a glória de Deus, mesmo em sofrimento.”
Este é o amor que define o líder cristão: não o que exige, mas o que se entrega com alegria, mesmo à custa do próprio bem-estar. Esse padrão está em agudo contraste com o espírito mercenário condenado por Cristo em João 10. O verdadeiro pastor dá a vida pelas ovelhas; o falso foge quando o perigo chega (Jo 10:11-13).
B. O amor superior a dons e conhecimento
O apóstolo Paulo corrige a igreja de Corinto, que valorizava dons espetaculares e sabedoria humana, afirmando:
“O saber ensoberbece, mas o amor edifica” (1 Co 8:1), e depois:
“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos… se não tiver amor, nada serei” (1 Co 13:1-2).
O amor não é um mero “complemento” às doutrinas da fé, mas a própria expressão prática da fé verdadeira. Como disse João Calvino:
“A fé verdadeira não pode estar ociosa, mas sempre se manifesta em amor.” (Comentário de Gálatas 5:6)
Portanto, o conhecimento teológico mais profundo, sem amor, é como um sino que ressoa sem alma. Mas o amor — moldado pela cruz e guiado pela Palavra — revela a presença genuína de Cristo no coração.
C. Amar é ouvir e sofrer com o outro
O teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, que pagou com a vida sua resistência contra o nazismo, escreveu em Vida em Comunhão:
“O primeiro serviço que se deve prestar ao outro na comunhão consiste em ouvi-lo. Assim como o amor a Deus começa com o ouvir a sua Palavra, o amor pelos irmãos começa com aprender a ouvi-los.” (Bonhoeffer, 1982, p. 75)
Essa afirmação é profundamente reformada, pois enraíza o amor na encarnação prática da graça de Deus. Ouvir é um ato de rendição, de presença, de autoesvaziamento — um pequeno martírio da pressa e da autopreservação. Amar, no pensamento de Bonhoeffer, é abrir espaço dentro de si mesmo para o sofrimento e a voz do outro, como Cristo fez por nós. Como também ensinava Herman Bavinck:
“O amor é o cumprimento da lei, pois é a imagem do próprio Deus. Ele dá, sustenta, perdoa e sofre — e assim deve ser o amor do cristão.” (Dogmática Reformada, vol. 4, p. 256)
D. O amor de Cristo nos constrange
Paulo resume a motivação por trás de seu serviço sacrificial com uma frase que pulsa com teologia:
“Pois o amor de Cristo nos constrange” (2 Co 5:14).
A palavra grega usada aqui, synechō, carrega a ideia de ser “pressionado, compelido por dentro” — como uma força irresistível que toma o coração e guia os passos. O amor que vimos na cruz não é apenas um exemplo: é uma força operante que move o cristão à mesma entrega. Na tradição reformada, isso é resultado da união com Cristo: estando n’Ele, amamos como Ele ama. Michael Horton escreve:
“A ética cristã não começa com o que devemos fazer, mas com o que Deus já fez por nós em Cristo. Só assim podemos amar como Ele nos amou.” (Cristianismo Cotidiano, p. 189)
A liderança cristã autêntica é medida não por resultados, mas pelo amor que se sacrifica silenciosamente. O pastor que chora com seu povo, o missionário que sofre no anonimato, o irmão que se doa sem ser visto — todos espelham o Cordeiro de Deus que amou até a morte, e morte de cruz (Fp 2:8). No fim, amar assim é morrer mil pequenas mortes todos os dias. Mas é também viver a vida verdadeira, aquela que reflete o coração de Deus. Como escreveu Jonathan Edwards:
“O amor é a vida de todas as virtudes cristãs. Ele é o sopro da fé, o sangue da esperança, e o corpo da obediência.”
Serviço que reflete Cristo
Na lógica do Reino de Deus, grandeza não se mede por prestígio, mas por disponibilidade para o serviço humilde. Enquanto o mundo busca glória por meio de autoridade e reconhecimento, Cristo redefine o verdadeiro poder como entrega e obediência amorosa. A liderança cristã, à luz da cruz, não é palco de ascensão, mas um altar de sacrifício.
A. Cristo, o servo rei
Jesus deixa claro que sua missão era servir, e não ser servido:
“Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Marcos 10:45).
Essa afirmação está no centro da ética cristã e da espiritualidade reformada. Cristo, o Verbo eterno, que “sendo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus como algo a que devesse se apegar”, humilhou-se até a morte (Fp 2:6-8). Em sua encarnação e ministério, vemos a glória da liderança cruciforme, onde o serviço é o caminho da exaltação (Fp 2:9).
Como escreveu João Calvino em seu Comentário sobre Marcos 10:45:
“Cristo nos mostra que toda autoridade é legítima apenas quando exercida para o bem dos outros. O governo cristão é um ministério, não um domínio.”
Cristo rejeita a ambição carnal, como quando recusou ser feito rei após multiplicar os pães (João 6:14-15), e escolheu associar-se aos marginalizados, como Zaqueu, o desprezado cobrador de impostos (Lc 19:1-10). Isso revela que serviço, na perspectiva divina, não é rebaixamento, mas vocação régia.
B. Serviço como caminho de liderança
Elisabeth Elliot, que conheceu de perto o custo do discipulado ao perder o marido no campo missionário, escreveu com autoridade espiritual:
“Creio que a Igreja será mais eficiente para levantar líderes quando nós começarmos a exemplificar a serventia […] Jesus disse: ‘Se você está pronto para ser o último, então, você será o primeiro. Se você está disposto para fazer coisas pequenas, então, encarregarei você de muitas coisas.’”
(Elliot, 1987, citada por Borthwick, 1989, p. 69)
Sua vida é testemunho de que o serviço não é apenas preparação para algo maior — ele é o algo maior. Toda vocação é santa quando realizada diante de Deus e para o bem do próximo. Este espírito de humildade é a antítese do pensamento mundano, e como afirma:
“O modelo de liderança de Cristo inverte completamente os valores do mundo. Enquanto o mundo valoriza status, poder e autoridade, Jesus ensina que a verdadeira grandeza está no serviço humilde e no sacrifício pessoal.”
(Nicodemus, 2014, p. 97)
Essa inversão é profundamente reformada. Herman Bavinck, ao falar sobre a imitação de Cristo, escreve:
“A vida cristã deve ser conformada à cruz de Cristo. Servir, sofrer, e amar no anonimato: aí está a verdadeira forma da glória futura.”
(Dogmática Reformada, vol. 4, p. 273)
C. O Escândalo da Toalha e da Bacia
A cena em João 13 é talvez a mais bela representação desse serviço: o Criador lava os pés de suas criaturas. O gesto é escandaloso, pedagógico e profundamente teológico.
“Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (Jo 13:14)
Martinho Lutero, ao comentar esse texto, escreveu:
“Deus não precisa das nossas boas obras, mas o nosso próximo precisa. Assim, Cristo nos lava para que lavemos uns aos outros — não com superioridade, mas com o mesmo amor que nos purificou.”
A fé reformada insiste que todo serviço nasce da gratidão por termos sido servidos primeiro por Deus em Cristo. Não servimos para conquistar favor, mas porque fomos conquistados pelo favor eterno. Isso transforma tarefas simples — como acolher um estranho, visitar um enfermo, ensinar uma criança — em atos de culto, pois são reflexos do próprio Cristo.
D. A espiritualidade da tarefa oculta
No pensamento reformado, não há obra secular quando feita para a glória de Deus (cf. 1Co 10:31). Como ensina Abraham Kuyper,
“Não existe uma polegada quadrada em todo o domínio da nossa existência sobre a qual Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!”
O serviço cristão, portanto, não se limita ao púlpito ou à missão transcultural. Ele floresce na cozinha, na enfermaria, no abraço silencioso, no cuidado com o invisível. Essa visão eleva o serviço diário a um altar de adoração.
Como o princípio do amor sacrificial pode transformar seu estilo de liderança? De que formas concretas você pode manifestar uma atitude de serviço em seu contexto de liderança?
CONCLUSÃO
O caráter do líder cristão, à luz de Hebreus 13:15-19 e das leituras complementares, não é um adereço opcional, mas o reflexo visível de uma transformação invisível operada pela graça de Deus. Não se trata de um comportamento disciplinado por regras externas, mas de uma vida moldada pelo Espírito Santo à semelhança do Filho, o nosso grande Pastor (Hb 13:20).
A liderança cristã nasce da comunhão com Cristo e floresce na conformidade com Ele. Não é produto de estratégias humanas ou habilidades técnicas, mas do processo contínuo de mortificação do ego e vivificação em Cristo, conforme ensina a teologia reformada a partir de passagens como Gálatas 2:20 e Romanos 8:13. Charles Spurgeon, com sua típica profundidade pastoral, declarou:
“Um ministério santo é o resultado de um santo coração.”
(Palestras aos Meus Estudantes, p. 12)
Esta verdade reformada está enraizada no princípio de que Deus se agrada mais da integridade interior do que de façanhas exteriores (cf. 1 Sm 16:7). Como diria João Calvino, “Deus prefere um coração purificado a todas as pompas de religiosidade externa” (Comentário sobre o Salmo 51). Para Calvino, o verdadeiro conhecimento de Deus sempre conduz à piedade prática (Institutas, I.2.1). Isso implica que o ministério e a liderança não são meros ofícios funcionais, mas expressões públicas de uma fé pessoal autêntica.
A liderança cristã autêntica não se define por títulos ou carisma, mas pelo caráter semelhante ao de Cristo. Como escreve Justo L. González:
“A diferença entre a liderança cristã e a secular não está nos objetivos organizacionais, mas na fonte e natureza da autoridade exercida.”
(História Ilustrada do Cristianismo, 2010, p. 217)
Na tradição reformada, essa autoridade não é tirânica, mas pastoral; não é dominadora, mas servil. Como ensina Herman Bavinck:
“Toda autoridade, na criação e na Igreja, está fundamentada na verdade de que Deus é o único Senhor, e toda autoridade humana é apenas um reflexo delegativo e limitado dessa soberania.”
(Dogmática Reformada, vol. 2, p. 547)
Por isso, o líder segundo o coração de Deus lidera como servo, pastoreia com temor e ministra como quem prestará contas. As virtudes mencionadas — santidade, sabedoria, fé, amor e serviço — não são ideais genéricos, mas atributos encarnados em Jesus Cristo. Ele é o modelo perfeito do que significa liderar em submissão ao Pai e em favor do próximo. Nele vemos a plenitude do Espírito sem medida (Jo 3:34), a sabedoria que excede a de Salomão (Lc 11:31), e o amor que se doa até o fim (Jo 13:1).
“Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós” (2 Coríntios 4:7)
A metáfora paulina do vaso de barro é profundamente reformada. Agostinho de Hipona, lido amplamente pelos reformadores, já ensinava que “a humildade é o solo fértil onde a graça floresce”. Calvino ecoa isso ao ensinar que Deus frequentemente escolhe os fracos, para que toda a glória seja sua, e não do instrumento (cf. 2Co 12:9; Institutas, III.6.4). O líder cristão, portanto, não brilha por força própria, mas refracta a glória de Cristo em sua fraqueza santificada.
O autor de Hebreus admoesta os crentes a obedecerem aos seus líderes espirituais, pois estes “velam pelas almas como quem deve prestar contas” (Hb 13:17). Esse texto ecoa a advertência de Pedro:
“Apascentai o rebanho de Deus… não como dominadores dos que vos foram confiados, mas sendo exemplos para o rebanho. E, quando se manifestar o Supremo Pastor, recebereis a coroa de glória” (1Pe 5:2-4)
O pensamento reformado não vê essa responsabilidade como um fardo profissional, mas como um encargo sagrado confiado pelo próprio Cristo. A prestação de contas final diante do “Pastor Supremo” (ἀρχιποιμήν — archipoimēn) transforma cada decisão, cada palavra e cada silêncio do líder em atos de adoração ou de desonra. Richard Baxter, puritano reformado, dizia:
“Cuide de si mesmo mais do que do rebanho, pois só um pastor em comunhão com Cristo pode pastorear eficazmente.”
(O Pastor Reformado, cap. 1)
A liderança cristã autêntica não se conforma à lógica de performance, mas à de comunhão. Não é o pedestal que qualifica o servo de Deus, mas o altar em que ele se entrega. Seu caráter, forjado na fornalha da graça e do arrependimento contínuo, torna-se testemunho vivo de que Cristo reina em vasos frágeis para a glória do Pai. Liderar como Cristo é aceitar ser moldado continuamente à sua imagem — até que o próprio rebanho veja no pastor a luz do verdadeiro Pastor.
“A verdadeira medida de um líder cristão não é a extensão de sua influência, mas a profundidade da sua semelhança com Cristo.”
APLICAÇÃO PRÁTICA
- Autoexame regular: Reserve tempo semanalmente para um autoexame sincero diante de Deus, convidando o Espírito Santo a revelar áreas onde seu caráter precisa de crescimento. Utilize Gálatas 5:22-23 como parâmetro para avaliar o desenvolvimento do fruto do Espírito em sua vida.
- Prestação de contas: Estabeleça um relacionamento de mentoria com um cristão maduro a quem você possa prestar contas regularmente. Compartilhe suas lutas, tentações e vitórias, permitindo que esta pessoa o ajude a crescer em caráter cristão.
- Desenvolvimento intencional: Identifique uma característica específica (santidade, sabedoria, amor, etc.) que precisa ser fortalecida em sua vida e desenvolva um plano prático para cultivá-la. Isso pode incluir estudo bíblico específico, leitura direcionada, exercícios espirituais e aplicação deliberada.
- Serviço prático: Comprometa-se com alguma forma de serviço que o coloque em uma posição de humildade e sacrifício. Isso poderia ser voluntariado em um ministério que atenda pessoas em situação de vulnerabilidade, ou simplesmente assumir tarefas menos visíveis e “gloriosas” em sua igreja local.
- Oração transformadora: Adote a prática diária de orar especificamente por transformação de caráter, usando orações bíblicas como Salmo 139:23-24 ou Efésios 3:14-19 como modelo.
Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAVINCK, Herman. Nossa Fé Razoável. São Paulo: Cultura Cristã, 2017.
BONHOEFFER, Dietrich. Vida em Comunhão. São Leopoldo: Sinodal, 1982.
BORTHWICK, Paul. Leading the Way. Colorado Springs: NavPress, 1989.
CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
CARSON, D.A. Memoirs of an Ordinary Pastor. Wheaton: Crossway, 2008.
COVEY, Stephen. The Seven Habits of Highly Effective People. New York: Simon & Schuster, 1990.
DUEWEL, Wesley L. Ablaze for God. Grand Rapids: Zondervan, 1989.
GONZÁLEZ, Justo L. História do Pensamento Cristão. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.
HORTON, Michael. Cristianismo Cotidiano. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
NEILL, Stephen. On the Ministry. London: SCM Press, 1952.
NICODEMUS, Augustus. Liderança Cristã Transformadora. São Paulo: Vida Nova, 2014.
SPROUL, R.C. The Mystery of the Holy Spirit. Wheaton: Tyndale, 2010.
SPURGEON, Charles H. Palestras aos Meus Estudantes. São José dos Campos: Fiel, 2007.

Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!
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