A Igreja como testemunha de Cristo em um mundo de trevas.

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Durante o rigoroso inverno de 1777, em Valley Forge, o exército colonial americano enfrentava condições extremas. Filadélfia havia caído nas mãos britânicas e mais de 2.500 soldados morriam de fome, doenças e frio intenso. Foi neste momento crítico que o barão Friedrich Wilhelm von Steuben chegou ao acampamento. Com metodologia disciplinada e visão clara, transformou um grupo desorganizado em um exército coeso e eficaz. Quando a primavera chegou, aqueles homens não eram mais sobreviventes desesperados, mas soldados treinados, unidos por um propósito comum. Muitos historiadores consideram esta transformação em Valley Forge o ponto decisivo na guerra pela independência americana.

Esta narrativa histórica oferece uma poderosa analogia ao que encontramos em Atos 1:8. Os discípulos de Jesus, um pequeno grupo com expectativas confusas e imensos desafios pela frente, aguardavam um revestimento de poder. Não poder militar, político ou econômico, mas um poder que os transformaria de seguidores inseguros em testemunhas destemidas — o poder do Espírito Santo. Este poder não mudaria suas circunstâncias externas imediatas, mas transformaria fundamentalmente quem eles eram e o que poderiam realizar.

Jesus prometeu aos seus discípulos: “Recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (Atos 1:8). No entanto, olhando para a realidade atual da igreja, deparamo-nos com um contraste alarmante: uma pesquisa recente do instituto AtlasIntel revela que apenas 18% dos brasileiros confiam nas igrejas evangélicas, posicionando-as entre as instituições de menor credibilidade no país. Como a igreja que “tinha a simpatia de todo o povo” (Atos 2:47) tornou-se uma instituição com tão baixa credibilidade? Este artigo examina essa transformação e busca entender como a igreja pode recuperar seu papel como testemunha autêntica de Cristo.

1. O Chamado para ser Testemunha: Uma Análise da Promessa em Atos 1:8

A promessa de Jesus em Atos 1:8 contém elementos fundamentais para compreendermos o verdadeiro significado de ser testemunha. Começando pela palavra “poder”, encontramos no original grego o termo “dynamis” (δύναμις), do qual derivamos palavras como “dinâmico” e “dinamite”. Este termo refere-se a uma capacidade sobrenatural, uma potência transformadora que vai além das habilidades humanas naturais.

Gordon Fee, renomado teólogo pentecostal, elabora sobre a natureza deste poder:

“A ‘dynamis’ prometida por Jesus não é primariamente miraculosa no sentido espetacular, embora inclua manifestações sobrenaturais. É essencialmente o poder de mudança de vida, transformação de caráter e testemunho eficaz. É o poder que transforma pessoas medrosas em proclamadores corajosos, transforma preconceitos arraigados em amor abrangente, e converte autopreservação em disponibilidade para sacrifício.” (Gordon Fee, “Paulo, o Espírito e o Povo de Deus”, p. 87)

O que Fee destaca é crucial para nosso entendimento: o poder do Espírito não se manifesta apenas em fenômenos extraordinários, mas primordialmente na transformação interior que capacita os convertidos para o testemunho. Nos relatos de Atos, vemos este poder manifestado de diversas formas: coragem sobrenatural diante da oposição (Atos 4:31), sabedoria para responder a acusações (Atos 6:10), e amor que transcende barreiras culturais e étnicas (Atos 8:14-17). Em cada caso, o Espírito capacita os discípulos a superarem limitações humanas para um testemunho eficaz.

É importante notar também a distinção linguística no texto grego. Existem duas palavras para “poder”: “exousia” (autoridade, direito de governar) e “dynamis” (força, capacidade). Jesus promete especificamente “dynamis” — não um poder político ou hierárquico, mas um poder espiritual, pessoal e moral que transforma o interior para capacitar o testemunho exterior.

2. O Testemunho Autêntico: O Significado de ser “Martys”

O termo “testemunha” em Atos 1:8 vem do grego “martys”, palavra que posteriormente evoluiu para o nosso termo “mártir”. Esta evolução linguística não foi acidental, mas refletiu uma realidade histórica profunda: o testemunho autêntico frequentemente exige sacrifício, às vezes até o sacrifício supremo da própria vida.

Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão executado por sua oposição ao regime nazista, captou esta dimensão do testemunho cristão de maneira pungente:

“Quando Cristo chama um homem, ele o convida a vir e morrer… O sofrimento, então, é a marca distintiva do discipulado cristão. Ser discípulo significa testemunhar Cristo, e onde há testemunho, cedo ou tarde haverá perseguição.” (Dietrich Bonhoeffer, “O Custo do Discipulado”, p. 43)

O comentário de Bonhoeffer ressoa profundamente com a evolução histórica do termo “martys”. O genuíno testemunho cristão nunca é meramente verbal, mas envolve a disposição de sofrer pela verdade testemunhada. Esta dimensão sacrificial do testemunho é exemplificada repetidamente no livro de Atos, desde o apedrejamento de Estêvão (Atos 7) até as numerosas perseguições sofridas por Paulo. Em cada caso, o sofrimento não é apenas uma consequência acidental do testemunho, mas frequentemente um meio através do qual o testemunho ganha poder e credibilidade.

No contexto original, “martys” tinha conotações jurídicas — uma testemunha que relata fatos ocorridos, não meras opiniões pessoais. Ser testemunha de Cristo significa, portanto, não apenas compartilhar interpretações teológicas ou preferências religiosas, mas proclamar eventos históricos concretos — principalmente a vida, morte e ressurreição de Jesus — e seu significado universal.

3. A Crise de Credibilidade: Por que a Igreja Perdeu a Confiança da Sociedade

A recente pesquisa do instituto AtlasIntel revela uma realidade preocupante: apenas 18% dos brasileiros confiam nas igrejas evangélicas, posicionando-as entre as instituições com menor credibilidade no país. Como explicar esta erosão dramática da confiança pública?

Podemos identificar pelo menos três fatores principais que contribuem para esta crise de credibilidade:

Primeiro, a relação negativa entre igreja e política. Quando líderes religiosos priorizam interesses partidários em detrimento dos princípios espirituais, a igreja perde sua voz profética independente. Como observa Timothy Keller:

“Quando a igreja se identifica muito estreitamente com qualquer partido político ou movimento político, ela compromete sua capacidade de falar profeticamente a toda a sociedade. A igreja deve manter uma ‘tensão crítica’ com todas as ideologias políticas, pois o Reino de Deus não se alinha perfeitamente com nenhum programa humano.” (Timothy Keller, “Igreja Centrada”, p. 121)

A análise de Keller destaca como a identificação da igreja com posições políticas específicas resulta em polarização, afastando aqueles que discordam dessas posições e comprometendo a missão mais ampla da igreja de proclamar o evangelho a todos. A história está repleta de exemplos onde a aliança entre igreja e poder político resultou em grave comprometimento do testemunho cristão.

O segundo fator é a mercantilização da fé. A exploração da espiritualidade para obtenção de lucro financeiro corrói profundamente a credibilidade da mensagem cristã. John Piper alerta sobre este perigo:

“Quando o evangelho se torna um meio para a prosperidade material, ele deixa de ser o evangelho. O evangelho de Jesus Cristo não promete conforto material, mas salvação do pecado. Qualquer mensagem que faça da riqueza material o objetivo da fé é uma distorção da mensagem de Jesus.” (John Piper, “Desiring God”, p. 163)

Esta mercantilização da fé, frequentemente expressa em promessas de prosperidade material em troca de contribuições financeiras, representa uma profunda distorção da mensagem cristã e inevitavelmente gera ceticismo entre observadores críticos.

O terceiro fator é a ausência de testemunho autêntico entre os próprios cristãos. Quando o comportamento cotidiano dos cristãos contradiz os valores que professam, o resultado é uma perda maciça de credibilidade. Como observou Mahatma Gandhi, embora não fosse cristão: “Eu gosto do seu Cristo, não gosto dos seus cristãos. Seus cristãos são tão diferentes do seu Cristo.”

Esta incongruência entre fé professada e vida vivida é talvez o fator mais determinante na crise atual de credibilidade. Como Jesus mesmo alertou: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7:16). Quando falta integridade ao testemunho cristão, não é surpresa que a credibilidade da igreja sofra.

4. A Restauração do Testemunho: O Poder Transformador do Espírito Santo

A promessa de Jesus em Atos 1:8 oferece não apenas um diagnóstico da atual crise de credibilidade, mas também aponta o caminho para sua solução. A fonte do poder para o testemunho autêntico é claramente identificada: “ao descer sobre vós o Espírito Santo”.

John Owen, o renomado teólogo puritano, elabora sobre esta centralidade pneumatológica:

“Não é sem profunda importância que Cristo vincula o testemunho à vinda do Espírito. Pois o Espírito não é meramente um facilitador do testemunho, mas Seu conteúdo e agente primário. O Espírito testifica de Cristo, e os crentes participam neste testemunho. Sem o Espírito, pode haver propaganda religiosa, mas não testemunho autêntico.” (John Owen, “A Obra do Espírito Santo”, p. 208)

A perspectiva de Owen alinha-se com a teologia joanina, onde Jesus declara que o Espírito “testificará de mim” (João 15:26). O testemunho cristão é fundamentalmente uma participação no testemunho do próprio Espírito. Isto tem implicações profundas para a prática contemporânea, direcionando-nos para além de técnicas e métodos para uma dependência consciente e contínua do Espírito Santo.

Abraham Kuyper oferece uma perspectiva complementar:

“O Espírito que capacita para o testemunho é o mesmo Espírito que ilumina a mente, santifica o caráter e transforma a comunidade. Testemunho no Novo Testamento nunca é uma técnica isolada, mas uma expressão integrada de uma vida totalmente rendida ao Espírito.” (Abraham Kuyper, “A Obra do Espírito Santo”, p. 173)

Esta visão holística evita a compartimentalização do testemunho como mera atividade religiosa separada. Em vez disso, o testemunho eficaz flui naturalmente de uma vida continuamente transformada pelo Espírito Santo.

Conclusão

Em 1966, a revista Time publicou sua famosa capa com a pergunta: “Deus está morto?” Refletindo o crescente secularismo da sociedade ocidental. Em 1971, apenas cinco anos depois, o “Jesus Movement” estava em pleno vigor, trazendo milhares de jovens da contracultura para a fé cristã. O que aparentava ser o ocaso da religião transformou-se inesperadamente em um reavivamento significativo.

Esta reviravolta histórica nos lembra que o avaço da igreja não depende primariamente de circunstâncias externas favoráveis ou de aceitação cultural, mas do poder transformador do Espírito Santo operando através de testemunhas fiéis. A atual crise de credibilidade que a igreja enfrenta não é fundamentalmente diferente dos desafios que os primeiros cristãos enfrentaram em um mundo romano frequentemente hostil.

O poder para o testemunho cristão autêntico não é político, econômico ou cultural, mas espiritual — a “dynamis” do Espírito Santo. Este testemunho não é apenas verbal, mas encarnacional, frequentemente envolvendo sacrifício, como refletido na evolução linguística de “martys” para “mártir”. A atual crise de credibilidade da igreja tem múltiplas causas: politização excessiva, mercantilização da fé e ausência de testemunho autêntico. A solução para esta crise não está em estratégias de relações públicas ou novas técnicas de marketing, mas em um retorno à dependência radical do Espírito Santo.

Somente Cristo!

Pr. Reginaldo Soares.

Referências Bibliográficas

BONHOEFFER, Dietrich. O Custo do Discipulado. São Paulo: Editora Vida, 2000.

FEE, Gordon. Paulo, o Espírito e o Povo de Deus. São Paulo: Vida Nova, 1997.

KELLER, Timothy. Igreja Centrada: Desenvolvendo seu Ministério com Profundidade e Amplitude. São Paulo: Vida Nova, 2014.

KUYPER, Abraham. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010.

OWEN, John. A Obra do Espírito Santo. São Paulo: PES, 2010.

PIPER, John. Desiring God: Meditations of a Christian Hedonist. Colorado Springs: Multnomah Books, 2011.

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