Descubra como a teologia reformada interpreta as bases bíblicas para o divórcio em casos de violência doméstica, examinando Mateus 19 e 1 Coríntios 7 com uma abordagem que prioriza proteção e dignidade.

Divórcio e novo casamento – Uma interpretação bíblica.

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A teologia bíblica do divórcio e novo casamento reconhece exceções específicas ao princípio da indissolubilidade, permitindo a dissolução do vínculo em casos de infidelidade sexual e abandono.

A Tensão Entre Ideal e Realidade

Imagem DIVÓRCIO ALIANÇA par de alianças quebradas
“Compreendendo o ensino bíblico sobre divórcio e novo casamento através da lente da graça e da verdade”

“O que Deus ajuntou não separe o homem” (Mateus 19:6). Com estas palavras, Jesus estabeleceu o padrão divino para o casamento. No entanto, em um mundo caído, nos deparamos com situações que parecem irreconciliáveis com este ideal.

O divórcio está ao nosso redor. Talvez esteja batendo à sua porta ou já tenha entrado em sua família. Como cristãos, buscamos orientação nas Escrituras para navegar estas águas turbulentas. O que a Bíblia realmente ensina sobre divórcio e novo casamento? Existem situações em que eles são permitidos? E como aplicar estes princípios aos desafios modernos como a violência doméstica?

A Evolução da Compreensão Bíblica do Divórcio

Do Antigo ao Novo Testamento: Continuidade e Desenvolvimento

No Antigo Testamento, Deuteronômio 24:1-4 estabelece as bases iniciais para o entendimento judaico sobre divórcio:

“Se um homem se casar e a esposa não for do seu agrado porque ele descobriu alguma coisa vergonhosa da parte dela, ele escreverá um certificado de divórcio e o dará a ela, mandando-a embora de sua casa. Depois de partir, ela poderá casar-se com outro homem. E, se este também a rejeitar e escrever um certificado de divórcio e o der a ela, mandando-a embora de sua casa, ou até mesmo se ele morrer, o primeiro homem que a mandou embora não poderá casar-se de novo com ela, pois ela foi contaminada. Isso seria detestável para o Senhor. Não tragam culpa sobre a terra que o Senhor, seu Deus, lhes dá como herança.”

Este texto, longe de incentivar o divórcio, funcionava como uma proteção para as mulheres em uma sociedade patriarcal. Ele diz que, se um homem casasse e depois deixasse de gostar de sua esposa por ter encontrado algo vergonhoso nela, ele deveria escrever uma carta de divórcio e entregá-la, mandando-a embora. Se essa mulher se casasse novamente e seu segundo marido também a rejeitasse, ou falecesse, o primeiro marido não poderia tomá-la de volta como esposa, pois isso seria uma abominação diante de Deus.

O objetivo da carta de divórcio era proteger a mulher, impedindo que o marido simplesmente a expulsasse sem qualquer amparo legal. O texto busca restringir a prática masculina de se divorciar impulsivamente. Deus ordena que o homem pense bem antes de mandar sua esposa embora, pois, uma vez divorciados e ela casando-se novamente, ele não poderia retomá-la.

A carta de divórcio servia para libertar tanto o homem quanto a mulher para um novo casamento de forma legítima e sem culpa. Dessa maneira, a mulher não ficava desamparada, e o homem não poderia simplesmente decidir retomá-la quando quisesse. Deus, assim, estabeleceu um princípio para evitar divórcios impulsivos e proteger a dignidade da mulher.

Como observa João Calvino em seus comentários sobre esta passagem:

“A permissão do divórcio não foi concedida aos judeus como aprovação de uma prática, mas como uma concessão à dureza de seus corações, mitigando males maiores através de uma regulamentação que protegia as mulheres da mera arbitrariedade masculina.”

A carta de divórcio, portanto, servia como um documento legal que liberava a mulher para reconstruir sua vida através de um novo casamento, impedindo que o marido a reivindicasse posteriormente.

O Debate Rabínico e a Resposta de Jesus

Nos tempos de Jesus, duas escolas rabínicas dominavam o debate sobre divórcio:

  1. A Escola de Hillel – Interpretação liberal que permitia o divórcio por praticamente qualquer motivo.
  2. A Escola de Shammai – Posição restritiva que limitava o divórcio a casos de imoralidade sexual.

Foi neste contexto que os fariseus abordaram Jesus com a pergunta: “É lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?” – Mateus 19:3. Eles queriam saber se Jesus seguia uma interpretação mais permissiva (como Hillel) ou mais restrita (como Shamai).

Jesus, porém, não entra nesse debate e responde citando a criação: “Desde o princípio, o Criador os fez homem e mulher” e ordenou que “o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne” (Gênesis 2:24). Assim, Ele enfatiza que o casamento foi instituído por Deus como uma união permanente.

Os fariseus insistem: “Então, por que Moisés permitiu dar uma carta de divórcio e mandá-la embora?”Deuteronômio 24:1-4. Jesus responde que essa permissão foi dada devido à dureza do coração humano, mas que não era esse o propósito original de Deus. Ou seja, o divórcio não reflete a vontade perfeita de Deus, mas uma concessão devido ao pecado. Jesus então estabelece um princípio: “Quem se divorciar de sua mulher, exceto por imoralidade sexual (porneia), e casar com outra, comete adultério”Mateus 19:9. Isso significa que o divórcio só seria permitido em casos de infidelidade conjugal, e, nesse caso, a parte inocente poderia se casar novamente.

Esse ensino difere das escolas rabínicas da época: enquanto Hillel permitia o divórcio por qualquer motivo e Shamai apenas por algo muito grave, Jesus apresenta um padrão mais elevado, voltando à intenção original do casamento. Nos Evangelhos de Marcos e Lucas, essa cláusula de exceção não aparece, mas Mateus a inclui, indicando que, em caso de adultério, o divórcio e um novo casamento seriam permitidos.

Muitos teólogos discutem essa cláusula, mas o contexto de Deuteronômio 24 e o ensino de Jesus deixam claro que a infidelidade conjugal é o único motivo legítimo para o divórcio segundo a Escritura. A resposta de Jesus transcendeu o debate rabínico, apontando para o propósito original do casamento na criação e introduzindo uma cláusula de exceção que viria a moldar a teologia cristã sobre o tema:

“Eu vos digo: quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de relação sexual ilícita, e casar com outra, comete adultério” Mateus 19:9.

As Bases Teológicas para Exceções Bíblicas ao Divórcio

As Duas Cláusulas de Exceção nas Escrituras

A tradição reformada reconhece tradicionalmente duas exceções bíblicas ao princípio da indissolubilidade do casamento:

  1. Porneia (Imoralidade Sexual) – Mencionada por Jesus em Mateus 19:9
  2. Abandono pelo Cônjuge Incrédulo – Apresentada por Paulo em 1 Coríntios 7:15

R.C. Sproul, em sua obra The Intimate Marriage, explica:

“As exceções bíblicas não devem ser vistas como incentivos ao divórcio, mas como reconhecimento das realidades do pecado que podem destruir a essência do pacto matrimonial. Mesmo nesses casos, a reconciliação permanece o ideal, mas o divórcio se torna uma opção legítima quando o pacto já foi fundamentalmente rompido.”

Esta compreensão está refletida na Confissão de Fé de Westminster (24.5-6), que reconhece tanto o adultério quanto o abandono obstinado como bases legítimas para a dissolução do vínculo matrimonial.

Expansão Interpretativa: Abandono e suas Manifestações

Um entendimento mais profundo de 1 Coríntios 7:15 revela nuances importantes:

“Se o não crente quiser separar-se, que se separe. Em tais casos, não fica sujeito à servidão nem o irmão nem a irmã. Deus chamou vocês para viverem em paz.”

O teólogo reformado Wayne Grudem observa que a expressão grega “en tois toioutois” (“em tais casos”) sugere uma aplicação mais ampla:

“O plural usado por Paulo indica que ele não está limitando sua instrução apenas ao abandono físico, mas inclui situações analogamente destrutivas ao pacto matrimonial e à paz à qual somos chamados.”

Este entendimento exegético abre espaço para considerar formas de abandono que não envolvem necessariamente a saída física do cônjuge, mas tornam a convivência insustentável ou perigosa.

Violência Doméstica e o Princípio da Proteção

Quando o Lar se Torna um Campo de Batalha

Como aplicar os princípios bíblicos a situações de violência doméstica? A violência constitui uma forma de abandono do pacto matrimonial? O teólogo John Piper, conhecido por suas posições conservadoras sobre divórcio, reconhece:

“Há formas de abandonar um casamento sem sair fisicamente de casa. Um marido que abusa fisicamente de sua esposa, ameaçando sua vida e bem-estar, criou um ambiente onde ela é efetivamente forçada a sair. Este não é apenas um caso de separação temporária para segurança, mas pode constituir um tipo de abandono funcional que rompe o pacto.”

Este conceito de “abandono funcional” oferece uma base teológica para compreender situações onde o agressor, embora fisicamente presente, viola tão fundamentalmente os votos matrimoniais que torna a relação inviável.

A Prioridade da Proteção na Ética Reformada

A tradição reformada sempre entendeu a lei divina através do princípio do “absolutismo graduado” – a ideia de que, em situações de conflito moral, certos mandamentos têm precedência sobre outros.

Herman Bavinck, em sua Ética Reformada, explica:

“Em situações onde diferentes deveres morais parecem conflitar, não estamos abandonando a lei de Deus ao escolher o dever maior; estamos reconhecendo a hierarquia de valores estabelecida pelo próprio Deus.”

Aplicando este princípio aos casos de violência doméstica, a proteção da vida e da segurança física (baseada no sexto mandamento contra o homicídio) pode ter precedência sobre a permanência em um casamento que se tornou destrutivo.

Princípios de Discernimento Pastoral para Casos Complexos

Avaliação Comunitária e Responsabilidade Eclesiástica

A aplicação desses princípios biblicamente fundamentados demanda sabedoria pastoral e discernimento comunitário. A igreja deve:

  1. Priorizar a segurança imediata da vítima e dos filhos
  2. Buscar aconselhamento profissional e considerar as evidências com cuidado
  3. Oferecer suporte contínuo durante todo o processo
  4. Avaliar a presença de arrependimento genuíno no ofensor

Charles Hodge, teólogo reformado clássico, observou:

“A igreja não deve ser menos compassiva que seu Senhor, nem mais restritiva que as Escrituras. Nosso dever é interpretar a Palavra de Deus de maneira que proteja os vulneráveis e promova a justiça, sempre buscando o arrependimento e a reconciliação quando possível.”

Perguntas para Discernimento

Ao avaliar situações de possível abandono funcional, pastores e líderes podem considerar:

  • A conduta do cônjuge torna a convivência impossível ou perigosa?
  • Há um padrão estabelecido de comportamento destrutivo?
  • O ofensor demonstra arrependimento genuíno ou apenas remorso temporário?
  • O retorno à relação representaria um risco à segurança física ou psicológica?

Graça e Verdade no Ministério do Divórcio

Imagem DIVÓRCIO ORAÇÃO Casal orando juntos
“Buscando discernimento bíblico em situações matrimoniais complexas”

A teologia reformada sobre divórcio e novo casamento busca equilibrar dois princípios fundamentais: a santidade do pacto matrimonial e a proteção dos vulneráveis. Reconhecer exceções bíblicas ao princípio da indissolubilidade não enfraquece nossa visão do casamento; pelo contrário, demonstra nossa compreensão da seriedade com que Deus trata as violações deste pacto.

A igreja é chamada a ministrar com graça e verdade em situações de divórcio, evitando tanto o legalismo que aprisiona as vítimas quanto a permissividade que banaliza o casamento. Ao interpretar as Escrituras com fidelidade e compaixão, mantemos o testemunho da santidade do casamento enquanto demonstramos o caráter protetor de nosso Deus.

Como pastores, conselheiros e membros da comunidade de fé, somos desafiados a buscar a sabedoria divina em cada caso, reconhecendo que o divórcio, embora nunca o ideal de Deus, pode ser em algumas situações a aplicação mais fiel dos princípios bíblicos de proteção, justiça e paz.

Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.

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