Uma Perspectiva Cristã Reformada sobre Violência Doméstica.
A violência doméstica representa uma distorção fundamental da imagem divina nos relacionamentos, contradizendo diretamente o design bíblico para o casamento.
A Realidade Oculta em Nossos Lares

“O segredo que você guarda, guarda você.” Esta verdade penetrante ressoa profundamente quando confrontamos a devastadora realidade da violência doméstica. Em lares que deveriam ser refúgios de amor, milhares de pessoas vivem prisioneiras do abuso, enquanto comunidades – inclusive as cristãs – muitas vezes permanecem em silêncio. O filme É Assim que Acaba narra a história de Lily Bloom, uma florista residente em Boston, cujo sobrenome evoca a ideia de “florescer”. A vida de Lily é marcada por traumas de infância e adolescência, pois seu pai, apesar de ser um homem respeitado publicamente, agredia sua mãe dentro de casa.
A violência paterna deixa marcas profundas em Lily, que, ao ser solicitada a discursar sobre o pai falecido, não consegue elencar sequer uma qualidade positiva. Mais tarde, Lily se casa com Ryle, um homem que, apesar do comportamento carinhoso inicial, revela-se abusivo e emocionalmente instável.
O relacionamento se torna um ciclo de violência. O primeiro episódio ocorre quando Lily queima o jantar e Ryle, ao tentar pegar a travessa no forno, se queima e por reflexo, atinge Lily. Em outra ocasião, durante uma discussão, Lily cai da escada, em um incidente que parece acidental. No entanto, a violência se intensifica quando Ryle descobre sobre Atlas, um ex-namorado de Lily. Ele a agride violentamente e tenta forçá-la a uma relação sexual.
No hospital, Lily finalmente reconhece que os episódios anteriores não foram acidentes, mas sim agressões. O filme retrata a tendência de vítimas de violência doméstica em criar justificativas para o abuso, especialmente quando o agressor é um parente ou pessoa próxima. Frases como “foi sem querer”, “ele estava nervoso” ou “ele é bom na maior parte do tempo” são comuns. A decisão de Lily no final do filme, que dá título à obra, representa a quebra do ciclo de violência, visando proteger sua filha.
O Coração do Problema: Uma Distorção da Imagem Divina
A Teologia do Abuso: Uma Contradição aos Propósitos de Deus
O abuso doméstico representa uma das mais severas distorções da imagem de Deus nos relacionamentos humanos. A tradição reformada, com sua ênfase na total depravação humana, nos ajuda a compreender a raiz do problema sem minimizá-lo.
João Calvino, em suas Institutas da Religião Cristã, observou que “o coração humano é uma fábrica de ídolos.” No contexto da violência doméstica, o abusador frequentemente idolatra controle e poder, colocando seus desejos acima do bem-estar de quem deveria amar e proteger.
Esta idolatria manifesta-se nas justificativas que vemos no filme: Ryle inicia com gestos de carinho, mas gradualmente revela um padrão de violência, tentando depois minimizá-lo como “acidentes” ou reações justificáveis. Esta progressão demontea a natureza enganosa do pecado, começando sutilmente e avançando de forma gradativa até revelar todo o horror de sua verdadeira face.
Você já se perguntou por que é tão difícil para as vítimas reconhecerem os primeiros sinais de abuso? Como Lily, muitas pessoas normalizam comportamentos abusivos, especialmente quando cresceram em ambientes semelhantes.
A Submissão Distorcida: Mal-entendidos Bíblicos
Um dos aspectos mais perturbadores da violência doméstica em contextos cristãos é a distorção de textos bíblicos para justificar o abuso. Uma exegese honesta e bem feita de passagens como Efésios 5 revela uma realidade completamente diferente.
“Maridos, amai vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela.” (Efésios 5:25)
R. C. Sproul, teólogo reformado contemporâneo, comenta sobre esta passagem: “O padrão para o amor conjugal não é qualquer amor humano, mas o amor sacrificial de Cristo, que deu sua vida pela igreja. Qualquer tentativa de exercer autoridade sem este amor sacrificial é uma perversão do plano divino.”
O contexto histórico desta instrução paulina é crucial: num mundo greco-romano onde as mulheres tinham poucos direitos, Paulo estabeleceu um padrão revolucionário de amor conjugal centrado no sacrifício do mais forte pelo mais vulnerável, compete ao homem proteger sua esposa, exatamente o oposto do abuso de poder. O marido tem o dever de honrar sua esposa e deve tratá-la com dignidade e respeito. Não são poucos os que interpretam de forma equivocada o conceito bíblico de submissão, utilizando-o para justificar comportamentos abusivos e humilhantes. Contudo, as Escrituras Sagradas não oferecem qualquer respaldo para o abuso verbal, psicológico ou físico contra a esposa. Para o cristão contemporâneo, isto significa que qualquer apelo à “autoridade marital”, “submissão feminina” que resulte em degradação, medo ou dano físico representa uma distorção perversa das Escrituras. Cabe à Igreja amparar as vítimas de violência e buscar a justiça para elas. O cristão deve perdoar, mas também deve lutar contra a maldade e buscar a justiça.
A Resposta da Igreja: Justiça e Misericórdia
O Mandato da Proteção: A Igreja como Refúgio
A violência doméstica coloca a igreja diante de uma responsabilidade inescapável de proteger os vulneráveis. A Confissão de Fé de Westminster afirma que os crentes são chamados a “preservar a vida dos outros” e a “subtrair-se de tudo quanto tende a destruir a vida.” A igreja nunca deve aconselhar uma mulher a permanecer em situações onde há abuso físico. A proteção das vítimas vem antes da preservação de um casamento abusivo.”
O que vemos no filme quando Lily finalmente decide interromper o ciclo de violência – “É Assim que Acaba” – ilustra precisamente o tipo de posicionamento que os cristão devem assumir. Assim como Lily protege sua filha do ciclo de violência, a comunidade cristã proteger e apoiar às vítimas.
Arrependimento, Perdão e Consequências: A Tensão Teológica
O cristianismo reformado mantém uma tensão saudável entre o perdão e a justiça. Embora o evangelho ofereça perdão ao pecador arrependido, isto não elimina as consequências temporais do pecado.
Tim Keller expressa esta tensão com clareza: “O perdão não é o mesmo que reconciliação. O perdão é unilateral – você pode perdoar alguém independentemente de sua resposta. A reconciliação é bilateral – requer arrependimento genuíno e mudança comportamental.”
Defender que alguém que praticou violência doméstica deve receber as consequências legais de seus atos não está em contradição com o perdão cristão; Deus opera através das instituições civis para punir e conter o mal. Como Paulo ensina em Romanos 13:4, a autoridade civil é “serva de Deus” para punir aqueles que praticam o mal.
Esta compreensão equilibrada permite que a igreja:
- Ofereça perdão ao agressor verdadeiramente arrependido
- Apoie as medidas legais necessárias para proteger as vítimas
- Mantenha limites apropriados mesmo após o arrependimento
- Reconheça que a reconciliação pode não ser sempre possível ou sábia
Cura e Restauração: O Caminho à Frente
Quebrar o Ciclo: A Graça Transformadora
A história de Lily ilustra como padrões de abuso frequentemente se repetem através de gerações. Tendo testemunhado a violência de seu pai contra sua mãe, ela inicialmente falha em reconhecer sinais semelhantes em seu próprio casamento.
A teologia reformada, com sua ênfase na suficiência da graça divina para transformação pessoal, oferece esperança para quebrar este ciclo, a graça de Deus nos liberta não apenas da culpa do pecado, mas também de seu poder em nossas vidas. A transformação genuína começa com o reconhecimento da realidade. Para vítimas de abuso, isto significa reconhecer que:
- O abuso nunca é vontade de Deus para qualquer relacionamento
- Ninguém “merece” ser maltratado, independentemente de suas falhas
- A força para deixar um relacionamento abusivo vem da graça divina
- A cura é um processo que requer tempo e comunidade
Você conhece alguém que pode estar vivendo este ciclo de violência neste momento? O reconhecimento da verdade é o primeiro passo para a libertação.
A Comunidade Curadora: Corporificando o Amor de Cristo
O Catecismo de Heidelberg pergunta: “O que significa amar ao próximo como a si mesmo?” E responde: “Que devo fazer aos outros o que gostaria que me fizessem; e que devo ajudar fielmente o próximo em suas necessidades.” Esta orientação ética fundamental deve guiar a resposta da igreja à violência doméstica. Uma abordagem pastoral inclui:
- Proteção imediata das vítimas, incluindo colaboração com autoridades civis
- Ensino bíblico claro sobre o projeto divino para relacionamentos de respeito mútuo
- Aconselhamento especializado que integre princípios bíblicos com compreensão psicológica do trauma
- Comunidade de apoio que ofereça cuidado prático e emocional contínuo
A igreja não é apenas um local onde a Palavra é proclamada, mas um refúgio onde vidas que foram maltratadas encontram acolhimento, restauração e uma nova esperança. Um ambiente comunitário de cuidado, apoio mútuo e solidariedade prática é especialmente essencial para sobreviventes de violência doméstica, que muitas vezes carregam cicatrizes invisíveis, emoções sufocadas pelo medo, autoestima despedaçada pelo abuso e um profundo senso de solidão. Para essas pessoas, a igreja é mais do que um espaço de culto; é um ambiente seguro, onde elas possam compartilhar suas dores sem julgamento, encontrar aconselhamento fundamentado na graça, recebendo suporte emocional e espiritual contínuo. Ao cumprir essa missão, a igreja reflete o coração compassivo de Cristo, que veio para “curar os quebrantados de coração e libertar os cativos” – Isaías 61:1, oferecendo não apenas palavras de conforto, mas ações concretas de amor, justiça e restauração.
O Fim da Violência Começa Conosco
A história de Lily Bloom em “É Assim que Acaba” oferece um poderoso lembrete: interromper ciclos de violência doméstica requer coragem e reconhecimento da verdade. O entendimento equilibrado sobre a depravação humana e da graça transformadora, nos capaita para enfrentar esta realidade com sabedoria e compaixão.
Como cristãos, somos chamados não apenas a condenar a violência doméstica, mas a criar comunidades onde as vítimas encontrem proteção, os perpetradores enfrentem responsabilidade, e todos experimentem o poder restaurador do evangelho. É preciso reconhecer sinais de abuso, rejeitar teologias e estruturas eclesiásticas distorcidas que ignoram casos de violência, e construir ambientes de apoio para os vulneráveis.
Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.

Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!
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