ENTRE DUAS PÁTRIAS

Descubra como exercer sua cidadania cristã de forma digna do evangelho, vivendo um testemunho cristão autêntico na sociedade atual.

ENTRE DUAS PÁTRIAS

“A arte perdida de ser um cidadão do Céu enquanto caminha pela terra.”

“Não importa o que aconteça, exerçam a sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo, para que assim, quer eu vá e os veja, quer apenas ouça a seu respeito em minha ausência, fique eu sabendo que vocês permanecem firmes num só espírito, lutando unânimes pela fé evangélica.” Filipenses 1.27.


Rosa Parks foi uma ativista norte-americana fundamental no movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. Nascida em 4 de fevereiro de 1913, no Alabama, ela se tornou um símbolo da resistência à segregação racial ao recusar-se a ceder seu assento a um homem branco em um ônibus em Montgomery, em 1º de dezembro de 1955. Esse ato de coragem desencadeou o boicote aos ônibus de Montgomery, liderado por Martin Luther King Jr., marcando um ponto de virada na luta contra a discriminação racial. Não foi apenas um ato de protesto civil, foi algo mais subversivo, mais perigoso para as estruturas de poder estabelecidas. Foi o ato de uma mulher que compreendia visceralmente que sua verdadeira cidadania não era definida pelas leis segregacionistas de sua época, mas por uma lealdade mais alta, mais antiga, mais duradoura.

Parks, enraizada profundamente em sua fé cristã, estava exercendo sua cidadania de maneira digna do evangelho. E aqui reside uma das tensões mais fascinantes e desafiadoras da vida cristã: como ser simultaneamente cidadão fiel de duas pátrias que às vezes parecem ter leis completamente opostas?

A Palavra Que Mudou Tudo

Paulo, escrevendo aos filipenses, escolheu uma palavra que faria seus leitores se inquietarem em seus assentos. Politeuesthai — o verbo que emerge diretamente da pólis grega, carregando todo o peso da responsabilidade cívica, da participação ativa na vida comunitária, do orgulho de pertencer a uma cidade-estado. Os filipenses conheciam bem esse conceito; afinal, eram cidadãos romanos por direito, conectados ao coração do império pela majestosa Via Egnatia (uma importante estrada romana, construída no século II a.C., que ligava a Ilíria, a Macedônia e a Trácia, passando pelos territórios que hoje são Albânia, Macedônia do Norte, Grécia e a Turquia europeia).

Mas Paulo faz algo revolucionário com essa palavra familiar. Ele a sequestra, por assim dizer, e a redefine completamente. “Exerçam sua cidadania”, diz ele, mas acrescenta uma condição que muda tudo: “de maneira digna do evangelho de Cristo.” De repente, a lealdade suprema não é mais a Roma, com toda sua glória e poder, mas a um carpinteiro judeu crucificado que ressuscitou dos mortos.

C.S. Lewis capturou essa tensão brilhantemente quando observou que os cristãos são “enemy-occupied territory”:

Uma das coisas que me surpreendeu quando comecei a ler o Novo Testamento seriamente foi que ele falava tanto sobre um Poder Sombrio no universo — um poderoso espírito maligno que era considerado o Poder por trás da morte, da doença e do pecado. Esse Poder Sombrio foi criado por Deus e era bom quando foi criado, mas depois se rebelou e se voltou contra ele. Portanto, este universo está em guerra, uma guerra civil, uma rebelião, e nós vivemos em uma parte do universo ocupada pelo Poder Sombrio que está se rebelando contra o bem.

Território ocupado pelo inimigo — é isso que este mundo é.

Vivemos em um mundo que opera segundo princípios fundamentalmente diferentes dos princípios do Reino de Deus, mas somos chamados a ser agentes secretos da resistência, trabalhando para os interesses de nosso verdadeiro Rei.

O Paradoxo do Testemunho Duplo

Aqui está o paradoxo glorioso que deveria nos manter acordados à noite: quanto mais fiéis formos à nossa cidadania celestial, melhores cidadãos terrenos nos tornamos. O cristão deve ser “o melhor dos cidadãos terrenos precisamente porque é, primeiro, cidadão dos céus.”

Que ironia divina! Em um mundo que constantemente nos força a escolher lealdades, o evangelho nos chama a uma lealdade dupla. Não porque sejamos pessoas especialmente inteligentes ou virtuosas, mas porque nossa cidadania celestial nos liberta dos ídolos que normalmente corrompem a cidadania terrena — o poder, o status, a lealdade partidária.

O cristão é a pessoa mais livre na sociedade porque não precisa da aprovação da sociedade para validar sua existência. Essa liberdade — essa independência sagrada de todas as pressões terrenas — é exatamente o que nos capacita a servir a sociedade terrena com integridade genuína.

A Anatomia de Um Testemunho Autêntico

Paulo delineia três características do testemunho cristão autêntico, usando imagens que seus leitores filipenses compreenderiam imediatamente: o cidadão, o soldado e o atleta.

Primeiro, vivemos como cidadãos exemplares. Não porque seguimos algum manual de etiqueta cívica, mas porque nossa nova natureza em Cristo naturalmente produz o que os filósofos chamam de “virtude cívica”. Pagamos nossos impostos não por medo do fisco, mas por amor ao bem comum. Obedecemos às leis não por coerção, mas por consciência. Participamos da vida comunitária não por obrigação social, mas por gratidão àquele que nos chamou das trevas para sua maravilhosa luz.

Eugene Peterson parafraseou isso belamente: “Não importa o que aconteça, conduzam-se de uma maneira adequada a cidadãos do reino de Cristo.” Nosso comportamento público não é performance para impressionar, mas transbordamento natural de quem somos em Cristo.

Segundo, permanecemos firmes como soldados disciplinados. Paulo usa a imagem militar não para glorificar a guerra, mas para ilustrar a importância da unidade estratégica. Soldados não mantêm posição por heroísmo individual, mas por lealdade uns aos outros e à missão comum. O testemunho cristão é necessariamente comunitário — quando a igreja está dividida, seu testemunho público perde toda credibilidade.

Terceiro, competimos como atletas coordenados. Isto significa que “lutando juntos como atletas.” Paulo tem em mente não o corredor solitário, mas a equipe que trabalha em coordenação perfeita. Cada membro tem sua função específica, mas todos unidos pelo mesmo objetivo: a glória de Deus e o avanço do evangelho.

Quando as Duas Cidades Colidem

Agostinho nos ensinou sobre as duas cidades — a Cidade de Deus e a cidade dos homens — que coexistem até o fim dos tempos. Às vezes elas colaboram harmoniosamente; às vezes entram em conflito direto. E é precisamente nos momentos de conflito que nosso testemunho cristão é mais testado e, paradoxalmente, mais poderoso.

Jesus não nos prometeu que ser cidadão do céu seria fácil na terra. “No mundo vocês terão aflições”, ele advertiu, “mas tenham bom ânimo; eu venci o mundo” (João 16.33). Pedro e João descobriram isso quando o Sinédrio tentou silenciá-los: “Importa obedecer a Deus e não aos homens” (Atos 5.29). Não foi arrogância, mas clareza sobre hierarquias de autoridade.

A história está repleta de momentos em que cristãos tiveram que escolher entre aprovação humana e fidelidade divina. Dietrich Bonhoeffer enfrentando o regime nazista. Corrie ten Boom escondendo judeus. Martin Luther King Jr. marchando por justiça racial. Cada um deles compreendeu que há momentos em que nossa cidadania celestial nos obriga a ser desobedientes civis terrenos.

A Liberdade Que Vem da Dupla Cidadania

Mas aqui está a beleza libertadora desta tensão: nossa segurança última não repousa em nenhuma ordem política terrena. Isso nos liberta tanto do desespero quando nossa nação falha quanto da idolatria quando ela prospera. Podemos amar nossa pátria terrena sem absolutizá-la, criticá-la sem demonizá-la, servi-la sem adorá-la.

Charles Spurgeon observou que “o cristão é o melhor dos patriotas porque seu patriotismo é purificado pelo céu.” Quando nossa identidade primária está ancorada em Cristo, somos liberados para amar nosso país com um amor purificado — um amor que pode celebrar suas virtudes sem cegar-se para seus vícios, que pode trabalhar por sua justiça sem ignorar sua injustiça.

Vivendo Entre Mundos no Século XXI

Como, então, exercemos nossa cidadania de maneira digna do evangelho em nossa época de polarização extrema e tribalismos políticos? A resposta não é fugir da arena pública — isso seria abandono de nossa responsabilidade — nem abraçar completamente qualquer programa político terreno — isso seria idolatria.

A resposta é viver profeticamente: sempre apontando além de qualquer ordem política temporária para a justiça, misericórdia e verdade do Reino de Deus. Isso significa que às vezes encontraremos aliados inesperados e às vezes nos encontraremos solitários. Significa que seremos criticados tanto pela direita quanto pela esquerda, porque nossa lealdade suprema transcende categorias políticas terrenas.

“A igreja deve ser a igreja, o corpo vivo de Cristo.” Não um braço de qualquer partido político, não um reflexo de qualquer ideologia secular, mas uma comunidade que demonstra uma forma completamente diferente de ser humano.

O Testemunho Que Transforma Culturas

O verdadeiro poder do testemunho cristão não está em dominar a cultura, mas em transformá-la através do exemplo. Quando os primeiros cristãos cuidavam de órfãos e viúvas, não estavam fazendo declarações políticas — estavam vivendo o evangelho. Quando estabeleceram hospitais e escolas, não estavam buscando influência política — estavam expressando amor cristão.

E aqui está o segredo que nossa geração parece ter esquecido: a cultura é transformada não por poder político coercitivo, mas por exemplo atrativo. As pessoas são conquistadas para Cristo não por argumentos vencedores, mas por vidas transformadas.

Uma Vida Digna de Duas Pátrias

Que possamos redescobrir a arte perdida de sermos simultaneamente cidadãos exemplares da terra e embaixadores fiéis do céu. Que nossa presença nas cidades terrenas seja um prenúncio da Cidade que há de vir. Que nosso testemunho seja tão atrativo que faça outros desejarem conhecer nosso verdadeiro Rei.

E quando chegarem os momentos inevitáveis de tensão entre nossas duas cidadanias, que tenhamos a coragem de Rosa Parks, a clareza de Pedro e João, e a confiança de Paulo — sabendo que “nossa cidadania está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Filipenses 3.20).

O mundo está observando. A questão não é se teremos influência, mas que tipo de influência exerceremos. Que seja uma influência digna do evangelho de Cristo — uma influência que aponte além de todos os reinos terrenos para o Reino que nunca terá fim.

“Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.” — Mateus 5.9


Senhor Jesus, Tu que és nossa verdadeira cidadania, ensina-nos a viver fielmente entre dois mundos. Dá-nos sabedoria para exercer nossa cidadania terrena de maneira digna de teu evangelho. Une-nos em um só espírito, acima de nossas diferenças políticas e culturais. Concede-nos coragem para permanecer firmes quando nossas duas lealdades entrarem em conflito, lembrando-nos sempre de que nosso lar verdadeiro está contigo. Faz-nos instrumentos de tua paz em um mundo fragmentado. Em teu nome, que é acima de todo nome, oramos. Amém.

Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.

Leia também:

Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!

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