PAZ NAS ÁGUAS PROFUNDAS
A Jornada de Fé através do Abismo
Você já se perguntou como reagiria se, num breve momento, tudo o que amasse fosse arrancado de seus braços? Imagine-se na pele de um homem que, sob o céu noturno do Atlântico, contempla as águas escuras que se tornaram o sepulcro de suas quatro filhas. É ali, precisamente no centro de sua dor inominável, que nasce não um grito de desespero, mas um hino de rendição sublime.
O homem antes do abismo
Essa é a história de Horatio Spafford, um homem de carne e osso como nós. Nascido em Troy, Nova Iorque, estabeleceu-se em Chicago em 1856, cidade onde edificou não apenas uma carreira jurídica respeitável, mas uma vida de significado genuíno. Como advogado, seus talentos o levaram às salas de aula universitárias, onde ensinava Jurisprudência Médica na Universidade Lind.
Mas seria um erro reduzir Spafford a seus feitos profissionais. Sua vida era um tecido mais rico e complexo: Possuía propriedades que se estendiam pelo horizonte de Chicago; seu coração batia forte nas salas dominicais de sua igreja presbiteriana, onde ensinava as Escrituras; caminhava entre gigantes da fé como Dwight L. Moody e Ira Sankey, e sustentava com suas mãos e recursos o Seminário Teológico Presbiteriano do Noroeste.
“Bem-aventurado o homem que teme ao Senhor, que em Seus mandamentos tem grande prazer” (Salmo 112:1). Parecia que Horatio encarnava esta verdade antiga — sua vida era o quadro perfeito da prosperidade material e espiritual.
O fogo que precede a tempestade
Mas a história nos ensina, como ensinou Jó muitos séculos antes, que a riqueza pode derreter como cera ao fogo e que a prosperidade é tão fugaz quanto a névoa matinal. Em outubro de 1871, as línguas vorazes de um incêndio devoraram quase 7,5 quilômetros quadrados de Chicago. O Grande Incêndio, como ficou conhecido, consumiu não apenas pedaços de madeira e concreto, mas os fundamentos da segurança financeira de Spafford.
Não lhe parece estranhamente familiar? Quantas vezes construímos nossa identidade sobre fundamentos que podem desmoronar em um único dia? Somos arquitetos dedicados de nossas próprias torres de Babel — carreiras, posses, reputações — esquecendo-nos da fugacidade de todas essas coisas.
Como escreveu C.S. Lewis em “Peso de Glória”: “A riqueza temporal é um brinquedo delicado que Deus nos permite segurar por um momento antes que Ele o retire, mostrando-nos algo infinitamente mais precioso.” Foi esta lição que Horatio começou a aprender no calor daquelas chamas, mas o Mestre ainda tinha mais instruções a ministrar.
O Naufrágio do Ville du Havre: A Água após o Fogo
Dois anos depois, em novembro de 1873, Spafford planejou uma viagem à Europa para sua família. Devido a um compromisso de negócios, permaneceu em Chicago, enquanto sua esposa Anna e suas quatro filhas — Annie, Margaret, Elizabeth e Tanetta — embarcaram no luxuoso Ville du Havre.
Na madrugada de 22 de novembro de 1873, como que saído de um pesadelo, o Ville du Havre foi atingido pelo Loch Earn, um navio escocês de ferro. A colisão foi catastrófica, e o navio começou a afundar rapidamente.
Em meio ao caos, ouça o que suas filhas disseram, como relatado posteriormente por Anna: “As queridas crianças foram tão corajosas. Morreram rezando. Annie disse a Maggie e a mim: ‘Não tenham medo, Maggie, Deus cuidará de nós, podemos confiar Nele; e você sabe, mamãe, ‘O mar é Dele e Ele o fez”.”
A fé de uma criança! Como aquelas palavras ecoam as de Cristo: “Deixai vir a mim os pequeninos, não os impeçais, porque deles é o Reino de Deus” (Marcos 10:14). No escuro daquela noite terrível, aquelas meninas olharam para o mesmo mar que as engolia e enxergaram ali não um algoz, mas a obra do seu Pai celeste.
Em doze minutos — menos tempo do que você levará para ler este relato — o Ville du Havre desapareceu sob as ondas, levando consigo 226 vidas, incluindo as quatro filhas de Spafford. Anna, milagrosamente salva por uma tábua flutuante, foi uma das 87 pessoas resgatadas.
O telegrama e a caneta de Deus
Tente imaginar Horatio, em seu escritório em Chicago, recebendo aquele telegrama devastador: “Salva sozinha.” Duas palavras apenas, mas que encerravam um universo de dor.
O que você teria feito? Muitos de nós teríamos erguido o punho aos céus, questionando a justiça ou mesmo a existência de um Deus que permite tamanho sofrimento. Não seria essa a resposta “natural”?
Mas aqui está o paradoxo que os incrédulos não compreendem: a fé autêntica não é uma equação simplista de “obediência = prosperidade”. A fé verdadeira é aquela que, mesmo quando tudo o mais é arrancado de nós, agarra-se ao Criador com ainda mais força.
Como disse Eugene Peterson em “A Mensagem”: “A fé real brota no solo da perda e da limitação. Ela não cresce em canteiros bem cuidados de religiosos profissionais, mas em terrenos pedregosos da experiência humana.”
Horatio partiu imediatamente para encontrar sua esposa. E foi ali, sobre as mesmas águas que se tornaram túmulo para suas filhas, que algo extraordinário aconteceu. Ao passar sobre o local exato do naufrágio, Spafford não se entregou ao desespero. Ao contrário, naquele momento de profunda introspecção espiritual, ele escreveu:
“Quando a paz, como um rio, acompanha o meu caminho
Quando as tristezas, como ondas do mar, rolam
Seja qual for a minha sorte, tu me ensinaste a dizer
Está tudo bem, está tudo bem, com a minha alma”
Neste momento nasce “It is well with my soul”, você certamente a conhece como “Aflição e Paz” hino de numero 108 do Hinário Novo Cântico:
“Se paz a mais doce me deres gozar
Se dor a mais forte sofrer
Oh! Seja o que for, tu me fazes saber
Que feliz com Jesus sempre sou!Sou feliz com Jesus
Sou feliz com Jesus, meu senhor!”
Em vez de praguejar contra o céu, ele compôs um salmo de fé! Como D. Martyn Lloyd-Jones nos lembra em “Depressão Espiritual: Suas Causas e Cura”: “A verdadeira espiritualidade não é medida pela ausência de problemas, mas pela maneira como reagimos quando somos lançados na fornalha do sofrimento.”
Anatomia de um hino nascido no abismo
Em 1876, Philip Bliss compôs a melodia para as palavras de Spafford, apropriadamente nomeando-a “VILLE DU HAVRE”. A música se tornou um dos hinos mais amados na história do cristianismo, não porque oferece respostas simplistas, mas porque enfrenta honestamente a realidade do sofrimento enquanto reafirma uma verdade eterna: a paz que transcende o entendimento. Analisemos mais profundamente essa obra magistral:
A primeira estrofe evoca Isaías 66:12, “Eis que estenderei sobre ela a paz como um rio.” Não é curiosa a escolha de imagens aquáticas — paz como um rio, tristezas como ondas — para um homem cujas filhas foram engolidas pelo mar? Apenas alguém que experimentou a presença real de Deus poderia ressignificar assim o próprio instrumento de sua tragédia.
A segunda estrofe confronta a realidade do mal: “Ainda que Satanás me espanque, ainda que surjam provações”. Spafford não ignorava o adversário, mas relembrava a si mesmo da vitória já conquistada na cruz. Como um lutador experiente, ele evoca a “abençoada certeza” de que Cristo “olhou para o meu estado indefeso”.
A terceira estrofe é teologicamente magistral: “O meu pecado, oh, a felicidade deste glorioso pensamento! O meu pecado, não em parte, mas todo, está pregado na cruz.” Aqui está a loucura do evangelho que tanto intrigava Lewis: em meio à sua dor incompreensível, Spafford se regozija não na ausência de sofrimento, mas na presença de um Salvador que já carregou seu fardo mais pesado.
A quarta estrofe, raramente cantada hoje, anseia pela volta de Cristo: “E, oh, o dia glorioso, quando a trombeta soar e Ele vier!” Como Lloyd-Jones frequentemente pregava: “O cristão não é alguém cuja esperança está apenas nesta vida, mas cuja esperança se estende para além do véu, para o dia quando veremos face a face Aquele que agora conhecemos apenas em parte.”
Mais águas fundas e um novo horizonte
Como se a perda de quatro filhas não fosse suficiente, em 1880, os Spaffords perderam seu filho Horatio para a escarlatina. Cinco filhos — praticamente uma geração inteira — arrancados de seus braços.
Para piorar, a comunidade cristã, que deveria ser um porto seguro, tornou-se uma tempestade adicional. Alguns sugeriram que tantas tragédias seriam evidência de algum pecado secreto na vida dos Spaffords. Quão rápidos somos em nos tornar “consoladores miseráveis”, como os amigos de Jó, quando confrontados com o sofrimento alheio! Preferimos criar uma teologia conveniente que proteja nossa falsa sensação de segurança a admitir a verdade mais perturbadora: que os caminhos de Deus são insondáveis e que a chuva, de fato, cai sobre justos e injustos.
Cansados da incompreensão, os Spaffords partiram para Jerusalém, onde fundaram uma comunidade conhecida como Colônia Americana. Ali, tiveram mais duas filhas e dedicaram o resto de suas vidas a servir aos necessitados.
Não lhe parece irônico? Aqueles que perderam tanto tornaram-se canais de bênção para outros. Como escreveu o apóstolo Paulo: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em toda a nossa tribulação, para que possamos consolar os que estiverem em qualquer angústia, com a consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus” (2 Coríntios 1:3-4).
A quieta certeza no centro da tempestade
Que lições podemos extrair desta extraordinária jornada de fé?
Primeiro, que a fé autêntica não é um talismã contra o sofrimento, mas uma âncora durante a tempestade. Muitos cristãos modernos adotaram uma teologia de prosperidade que faria Jó e Spafford torcerem o nariz em perplexidade. Acreditamos que seguir a Cristo nos garantirá saúde, riqueza e uma vida livre de tragédias. Mas não foi isso que Jesus prometeu. Ele disse: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (João 16:33).
Segundo, que há uma estranha matemática no Reino de Deus, onde a perda pode resultar em ganho. Paradoxalmente, foi através da dor indizível que Spafford criou um legado espiritual que continua a consolar milhões de pessoas ao redor do mundo. Quantos corações aflitos encontraram paz ao cantar “Está tudo bem com minha alma”? Como escreveu George Herbert no hino “The Flower”: “E agora em idade avistei dor que transforma, e bênçãos fluindo de mim; quem teria pensado que meu coração murchado cresceria novamente depois de tamanhos derramamentos?”
Terceiro, que a verdadeira paz não depende das circunstâncias, mas de uma pessoa — Cristo. Como disse Peterson: “A espiritualidade não é um estado mental superior, mas uma entrega amorosa ao Deus que primeiro nos amou.” A paz de Spafford não veio de uma explicação satisfatória para sua tragédia, mas de uma comunhão profunda com Aquele que sofreu o abandono último na cruz.
A grande troca: Do lamento à adoração
O grande compositor de hinos Isaac Watts escreveu: “Quando contemplo a maravilhosa cruz, onde o Príncipe da Glória morreu, meu maior ganho considero perda, e lanço meu orgulho aos Seus pés.”
Horatio Spafford viveu esta verdade. Na cruz de Cristo, ele encontrou a força para transformar seu lamento em adoração. Não porque a dor desapareceu, mas porque encontrou Alguém que a transcende.
Não é esta a essência da fé cristã? Não a ausência de sofrimento, mas a presença de um Salvador que entrou em nosso sofrimento e o redimiu? Como escreveu C.S. Lewis: “Estou convencido de que Deus nos fala através da dor: é Seu megafone para despertar um mundo surdo.”
Anna Spafford expressou belamente esta verdade quando escreveu após a tragédia: “Temos sido tão amparados, tão confortados. Deus enviou paz aos nossos corações. Ele respondeu às nossas orações. Seja feita a Sua vontade.”
Navegando nossas próprias águas tempestuosas
Talvez você esteja agora enfrentando suas próprias águas profundas. Talvez um diagnóstico médico tenha abalado suas certezas, ou um relacionamento precioso tenha se despedaçado contra os rochedos da vida, ou talvez a morte tenha visitado sua casa deixando um vazio que palavra alguma pode preencher.
Para onde você olha quando as ondas se erguem ao seu redor? Olha para as circunstâncias, que mudam como o vento? Para os outros, que por mais bem-intencionados que sejam, são limitados como você? Ou para Aquele que andou sobre as águas e acalmou a tempestade com uma palavra?
Como Lloyd-Jones frequentemente perguntava em seus sermões: “Você está ouvindo a si mesmo ou falando consigo mesmo?” Há uma diferença crucial aqui. Quando ouvimos a nós mesmos, permitimos que nossos medos e ansiedades ditem o rumo. Mas quando falamos conosco mesmos — relembrando as verdades da Escritura e as promessas de Deus — retomamos o leme de nossa embarcação espiritual.
Horatio Spafford escolheu falar consigo mesmo: “Seja qual for a minha sorte, Tu me ensinaste a dizer: Está tudo bem com a minha alma.” Note bem: ele não diz que tudo estava bem com sua situação, sua família, suas finanças ou suas emoções. Ele afirma que tudo estava bem com sua alma — aquela parte mais profunda de seu ser que estava ancorada não nas circunstâncias passageiras, mas na rocha eterna.
A última nota: Uma canção no vale das sombras
Todos nós caminhamos, em algum momento, pelo vale da sombra da morte. É inevitável em um mundo quebrado. A questão não é se enfrentaremos tempestades, mas como navegaremos através delas.
Horatio e Anna Spafford nos ensinam que, mesmo nas águas mais profundas, é possível encontrar uma paz surpreendente — não porque sejamos fortes, mas porque Ele é fiel; não porque entendamos o propósito por trás de cada provação, mas porque conhecemos o coração d’Aquele que nos guia através delas.
Como escreveu o antigo hinista George Matheson, ele próprio familiarizado com o sofrimento após ficar cego aos 20 anos:
“Ó Amor que não me deixará ir,
Repouso minha alma cansada em Ti;
Devolvo-Te a vida que devo,
Para que em Teu oceano mais rico flua,
E mais plena seja.”
Esta é a essência da fé que sustentou os Spaffords e que pode nos sustentar hoje: um amor que não nos deixará ir, mesmo quando tudo o mais desmorona.
Querido leitor, qualquer que seja a tempestade que você esteja enfrentando agora, saiba que você não está sozinho nas águas. Aquele que acalmou o Mar da Galileia caminha ao seu lado, e com Sua mão estendida convida você a dizer, mesmo em meio às lágrimas: “Está tudo bem, está tudo bem com a minha alma.”
“Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória muito além de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se não veem são eternas.” 2 Coríntios 4:17-18.
Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.
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Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!
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