UMA VISÃO BÍBLICA SOBRE O TRABALHO

Reflexão cristã profunda sobre identidade e trabalho, revelando como a verdadeira vocação nasce em Cristo, não na produtividade. Um convite à liberdade espiritual.

UMA VISÃO BÍBLICA SOBRE O TRABALHO

“Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim.” Gálatas 2:20.

O Grande Engano dos Espelhos

Desde o início em nossa infância, somos instruídos – com a melhor das intenções, certamente – que o estudo diligente é o portal para o sucesso profissional e para a estabilidade financeira. Recebemos nossos primeiros diplomas como profecias que preveem nosso valor futuro no grande mercado da humanidade. E assim começamos uma adoração silenciosa diante dos espelhos da realização pessoal – espelhos convenientemente voltados apenas para nós mesmos.

Como personagens tristemente deslumbrados com toda a “ostentação” ao nosso redor, construímos fachadas impressionantes de sucesso – decoradas com títulos acadêmicos, redes sociais elegantes, e contas bancárias saudáveis – enquanto a verdadeira pessoa criada à imagem divina permanece faminta de significado por trás dessa elaborada arquitetura social.

“Mas,” você poderia contestar, “certamente o trabalho árduo e a excelência profissional são virtudes cristãs!” De fato, são – mas como expressões, não como fontes. Aqui reside a sutil diferença que muda tudo: a pergunta não é se devemos buscar a excelência, mas de onde flui essa excelência e, mais criticamente, a quem ela serve.

O livro de Gênesis revela uma verdade revolucionária que derruba todos os nossos espelhos: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gênesis 1:26-27). Observem bem: nossa identidade primordial não foi estabelecida por meio de um currículo impressionante ou uma carreira lucrativa. Éramos portadores da imagem divina muito antes de produzirmos qualquer coisa útil!

A Grande Inversão Paulina

Nossa cultura moderna – que, a propósito, não é nem tão moderna quanto imagina – nos bombardeia com a sugestão de que devemos “encontrar a nós mesmos”, “ouvir nosso coração” ou “seguir nossa paixão” como se fôssemos projetos inacabados esperando por suficiente autodescoberta para finalmente existir. Quanta tolice encantadora! É como um peixe no oceano procurando ansiosamente pela água.

Paulo de Tarso – aquele fariseu brilhante cujos diplomas religiosos foram rapidamente destronados pelo encontro com Cristo ressurreto – apresenta uma perspectiva absolutamente escandalosa para a mente moderna: “Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim.” Que declaração extraordinária! Paulo não está meramente sugerindo uma melhoria em sua antiga identidade ou uma atualização espiritual para seu antigo eu. Ele proclama uma substituição radical – um “já não sou eu” que dá lugar a “Cristo vive em mim.”

A implicação disso para nossas vidas profissionais é absolutamente revolucionária. Se já não sou eu quem vive, então já não trabalho para definir quem sou. Trabalho porque já sei quem sou em Cristo. A direção da influência foi completamente invertida. Não é meu trabalho que me define; é minha identidade em Cristo que define meu trabalho.

C.H. Spurgeon captou essa verdade quando disse: “É melhor fazer o trabalho de Deus em nosso próprio estilo do que o trabalho do diabo no estilo de Deus.” Exatamente! A questão não é tanto o que fazemos, mas de quem somos quando o fazemos. A fonte determina a natureza da corrente que dela flui.

O Trabalho como Liturgia Encarnada

Os gregos antigos tinham dois conceitos distintos para trabalho: “ponos”, que significava labor doloroso, e “ergon”, que representava um trabalho significativo e criativo. Em nossa obsessão cultural com identidades auto-fabricadas, frequentemente reduzimos todo trabalho a “ponos” – um mal necessário a ser suportado para aquisição de status e recursos. Mas a visão cristã recuperada na Reforma oferece uma terceira via: trabalho como “liturgia viva” – uma forma de adoração encarnada no cotidiano.

Martinho Lutero, aquele monge robusto que redescobriu a graça nas páginas paulinas, compreendia isto com clareza cristalina: “O sapateiro cristão não se distingue por fazer cruzes em seus sapatos, mas por fabricar bons sapatos.” Que libertação! Não precisamos artificialmente “espiritualizar” nosso trabalho com uma camada superficial de religiosidade. A verdadeira espiritualidade do trabalho está em realizá-lo como expressão de quem somos em Cristo – criaturas amorosas feitas para servir.

Pense em Jesus em seu trabalho como construtor. Estaria ele gravando pequenos símbolos religiosos em cada construção de que participava para torná-la “cristã”? Ou estaria, simplesmente, fazendo obras bem estruturadas, casas resistentes as fortes chuvas? E tudo isso não como mero construtor, mas como o próprio Verbo Encarnado manifestando amor prático em cada obra realizada.

Paulo nos lembra em 1 Coríntios 6:19: “Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?” Este texto não se aplica apenas quando estamos na igreja ou em momentos de devoção explícita. Se nosso corpo é santuário do Espírito Santo, então a sala de aula onde ensinamos, o escritório onde administramos, a cozinha onde preparamos alimentos, o canteiro de obras onde construímos – todos estes lugares se tornam extensões desse santuário ambulante.

O Divino Paradoxo da Identidade

Existe um paradoxo delicioso na formação da identidade cristã: é precisamente quando abandonamos a autorrealização como objetivo que nos tornamos mais plenamente nós mesmos. Como Jesus disse: “Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa achá-la-á” (Mateus 16:25).

O mundo nos diz: “Encontre-se, expresse-se, promova-se! Construa sua marca pessoal!” Cristo nos diz: “Perca-se em mim e descubra quem você realmente foi criado para ser.” Esta é a diferença entre identidade como conquista e identidade como dom.

Quando Paulo declara em Gálatas 3:27-28: “porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes. Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” – ele não está negando as distinções práticas entre estas categorias. Certamente Paulo sabia distinguir entre homens e mulheres! O que ele está fazendo é muito mais radical: está subvertendo completamente a hierarquia de valor baseada nestas distinções.

No mundo antigo (e, lamentavelmente, ainda em grande parte no nosso), sua posição social, etnia e gênero determinavam seu valor fundamental como pessoa. Paulo diz: “Não mais!” Em Cristo, estas categorias perdem seu poder definidor. Elas se tornam descritivas, não prescritivas. São aspectos da jornada, não determinantes do destino.

Imagine um coro de vozes diversas. O valor do soprano não está em ser melhor que o baixo, nem o contralto tem menos valor que o tenor. Cada um encontra sua identidade não em competição com os outros, mas em harmonia com eles, contribuindo com sua voz única para a beleza do todo.

A Dança Trinitária no Local de Trabalho

Há uma razão profunda pela qual nossa identidade só é verdadeiramente descoberta em relação aos outros: nós refletimos um Deus que é, em si mesmo, uma comunidade de amor. O Pai, o Filho e o Espírito existem em perfeita comunhão – o que os teólogos antigos chamavam de “perichoresis”, a dança eterna de amor dentro da Trindade.

Cristo, em sua oração sacerdotal em João 17, revela a conexão entre esta unidade divina e nossa própria unidade em nosso chamado: “a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste” (João 17:21).

Observe a intenção: “para que o mundo creia.” Nossa unidade – inclusive no ambiente de trabalho – não é apenas para nosso próprio benefício ou conforto; é um testemunho visível da realidade do Deus trinitário.

Esta visão transforma fundamentalmente o propósito do trabalho. Nosso objetivo não é simplesmente sobreviver economicamente ou construir um império profissional, mas participar da missão de Deus no mundo. Trabalhamos como Cristo – não para conquistar status ou demonstrar superioridade, mas para servir amorosamente.

John Wesley compreendeu essa verdade durante o Grande Despertamento, a fé genuína não apenas altera a paisagem interna de nossas almas, mas transborda para transformar toda a sociedade. Wesley viu tecelões, mineiros e ferreiros – pessoas em ocupações consideradas comuns e mundanas – tornarem-se agentes de transformação espiritual e social simplesmente por entenderem que seu trabalho era uma extensão de quem eles eram em Cristo.

Cultivando a Identidade Verdadeira

Mas como, diante da pressão constante de nossa cultura de realização, podemos manter essa identidade centrada em Cristo? Como impedimos que nosso trabalho se torne novamente um ídolo devorador que exige nossa adoração?

Primeiro, precisamos praticar regularmente o que chamaremos de “despojamento intencional” – aqueles momentos quando deliberadamente colocamos de lado nossos títulos, conquistas e falhas profissionais, e nos apresentamos diante de Deus simplesmente como seus filhos amados. Momentos de oração, adoração e comunhão tornam-se cruciais não como meras atividades religiosas, mas como lembretes vivos de nossa identidade fundamental.

Dietrich Bonhoeffer, escrevendo de uma cela nazista onde todos os seus títulos acadêmicos e conquistas teológicas haviam sido brutalmente arrancados, descobriu: “No mundo invisível de Deus, somos amados de modo infinito, e nisso – e apenas nisso – reside nossa verdadeira dignidade.” Quanta sabedoria em um homem despojado de tudo exceto sua identidade mais essencial!

Segundo, devemos praticar regularmente o que George Herbert chamou de “varrer um quarto como para o Senhor” – reconhecer a dignidade sagrada nas tarefas mais comuns. Todo trabalho honesto, realizado com integridade como expressão de amor, torna-se um vislumbre do Jardim do Éden restaurado, onde o trabalho era alegria antes da maldição.

Por fim, devemos constantemente reorientar nosso trabalho em direção ao serviço. A pergunta transformadora não é “Como posso me destacar?” ou “Como posso avançar?”, mas “Como meu trabalho pode ser um canal do amor de Cristo para os outros?” Em cada profissão, em cada setor, existe a possibilidade sagrada de canalizar o amor divino para um mundo ferido.

Não há trabalho pequeno demais para isso. Pense nos pães e peixes nas mãos de Cristo – porções insignificantes que, quando entregues a ele, alimentaram milhares. Assim também nosso trabalho aparentemente pequeno, quando oferecido a Cristo e infundido com sua vida, pode ter um impacto que transcende qualquer medida visível.

O Convite Paradoxal

A grande ironia é esta: quando paramos de tentar encontrar nossa identidade no trabalho e começamos a expressar nossa identidade em Cristo através do trabalho, frequentemente descobrimos uma excelência e realização mais profundas do que jamais imaginaríamos. Como C.S. Lewis observou: “Mire no Céu e terá a Terra como acréscimo; mire na Terra e não terá nenhum dos dois.”

Fomos criados para algo maior que a autorrealização – fomos feitos para a glória de Deus. E, paradoxalmente, é apenas quando vivemos para essa glória que encontramos nossa verdadeira realização.

Então, meu amigo, quando você acordar amanhã e se preparar para mais um dia de trabalho – seja na sala de aula, no escritório, na fábrica, no campo ou em casa – lembre-se de quem você realmente é. Não é primariamente um professor, executivo, operário, agricultor ou cuidador – embora estas sejam expressões honrosas de sua vocação. Fundamentalmente, você é um portador da imagem divina e um templo do Espírito Santo, enviado ao mundo como embaixador do amor de Cristo. Como o antigo hino de Charles Wesley nos lembra:

“Forte Salvador, minha esperança Tu és!
Por Ti, só por Ti, mais forte me faço;
Tua justiça, Tua força, ó Jesus,
São minhas, são minhas, pois Teu eu me faço.”

Senhor Jesus, liberta-nos da tirania da autorrealização e da idolatria do sucesso profissional. Ajuda-nos a encontrar nossa identidade verdadeira e imutável em Ti, para que nosso trabalho flua não de ansiedade ou orgulho, mas de gratidão e amor. Que cada tarefa que realizarmos – das mais visíveis às mais ocultas – seja um reflexo da Tua graça e um canal do Teu amor para um mundo que ainda não Te conhece plenamente. Em Teu nome oramos, amém.

Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.

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Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!

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