LIÇÃO 10: AMAR A DEUS COMPLETAMENTE.
Como amar a Deus completamente, transformando cada aspecto da sua vida com devoção radical e amor incondicional.
Texto básico: Marcos 12.29-30. “Jesus respondeu: — O principal é: “Escute, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e com toda a sua força.” O segundo é: “Ame o seu próximo como você ama a si mesmo.” Não há outro mandamento maior do que estes.”
Leituras complementares:
- Deuteronômio 6.4-5. Este é o texto original que Jesus cita em Marcos 12.29-30, estabelecendo a base histórica do mandamento.
- Mateus 22.36-38. Apresenta a versão paralela do texto básico no evangelho de Mateus.
- Lucas 10.25-28. Fornece outro contexto onde Jesus enfatiza este mandamento, vinculando-o à vida eterna.
- Salmos 73.25-26. Expressa um exemplo prático de como amar a Deus de todo o coração, mesmo em meio às dificuldades.
- Josué 22.5. Demonstra como o mandamento de amar a Deus integralmente estava profundamente enraizado na tradição de Israel antes mesmo de Jesus.
- 1 João 5.3. Relaciona o amor a Deus com a obediência aos seus mandamentos, fornecendo uma definição prática de como amar a Deus.
- Filipenses 3.7-8. Ilustra como o amor a Deus deve superar todos os outros valores e prioridades na vida do crente.
Introdução
Em 1884, enquanto se recuperava de uma doença debilitante, o escritor russo Fiódor Dostoiévski testemunhou uma conversa entre seu filho e um amigo da família sobre a existência de Deus. A discussão o levou a escrever uma anotação em seu diário que posteriormente seria incorporada em sua obra “Os Irmãos Karamázov”: “Se Deus não existe, tudo é permitido.” Esta frase captura uma verdade profunda: o amor a Deus não é apenas um sentimento religioso, mas o fundamento que orienta toda a existência humana.
Jesus veio restabelecer o tipo de relacionamento para o qual os seres humanos foram criados: o relacionamento com Deus e entre si. Quando questionado sobre o mandamento mais importante, Ele não hesitou em apontar para o Shemá, a antiga confissão de fé de Israel, acrescentando que devemos amar a Deus com todo o nosso ser – coração, alma, entendimento e forças. Este não é um mandamento periférico ou opcional, mas o centro de tudo o que significa ser humano conforme o propósito original do Criador.
EXPLICAÇÃO DO TEXTO
Contexto Histórico e Bíblico
O texto de Marcos 12.29-30 ocorre em um momento significativo do ministério de Jesus. Um escriba, impressionado com as respostas de Jesus em debates anteriores, aproxima-se dele com uma pergunta genuína, diferenciando-se dos outros líderes religiosos que frequentemente questionavam Jesus com intenções hostis. Este encontro representa o ponto culminante das desavenças entre Jesus e o Conselho Superior (Sinédrio), como Marcos esclarece no versículo 34b ao mencionar que os adversários ficaram completamente refutados.
O diálogo acontece no contexto das crescentes tensões entre Jesus e as autoridades religiosas em Jerusalém, durante a última semana antes de sua crucificação. Este escriba, descrito como “honesto e ansioso por aprender”, demonstra uma sinceridade que contrasta com a hostilidade de muitos de seus colegas. A conversa ilustra como um verdadeiro judeu, fiel à Escritura e às suas orações diárias, poderia naturalmente concordar com Jesus, enquanto aqueles que buscavam eliminá-lo estavam sendo infiéis à sua própria tradição e fé.
Termos Relevantes no Texto
Escriba (Professor da Lei): No original, refere-se a um especialista nas Escrituras judaicas, responsável por interpretar e ensinar a Lei de Moisés. Diferentemente dos outros escribas mencionados nos evangelhos, este demonstra uma atitude sincera de busca pela verdade.
Principal (Maior) mandamento: No original grego, a pergunta busca identificar qual mandamento está “na frente e tem validade absoluta” – uma indagação sobre a hierarquia dos mandamentos e o princípio fundamental da fé. Não se trata de descartar os demais mandamentos, mas de encontrar o eixo central que dá sentido a todos.
Xma (Shemá): Refere-se à confissão fundamental da fé judaica baseada em Deuteronômio 6.4-5, que todo judeu devoto recitava duas vezes ao dia (pela manhã e à noite). O nome “Shemá” vem da primeira palavra hebraica do texto: “Ouve” (Shemá, Israel).
“Coração” (καρδία/kardia em grego) – No pensamento hebraico, o coração não é apenas a sede das emoções, mas o centro da personalidade humana, incluindo vontade, pensamentos e decisões. Amar a Deus de todo o coração significa dedicar todo o centro de nosso ser a Ele.
“Alma” (ψυχή/psychē em grego) – Refere-se à totalidade da vida e existência da pessoa. Na compreensão bíblica, a alma é o princípio vital que anima o corpo e inclui todos os aspectos da personalidade e existência humana.
“Entendimento” (διάνοια/dianoia em grego) – Este termo foi acrescentado por Jesus à citação original de Deuteronômio, enfatizando o aspecto intelectual do amor. Indica que amar a Deus envolve também nossa capacidade cognitiva, nossa mente e raciocínio.
Expressões Relevantes no Texto
“O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor”: Esta declaração de monoteísmo constitui o fundamento da fé israelita, diferenciando-a das religiões politeístas circundantes. A expressão estabelece a base teológica para o mandamento que se segue – o amor a Deus só pode ser integral porque Ele é único e exclusivo.
“De todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força”: Esta quádrupla repetição do termo “todo/toda” enfatiza a totalidade e integralidade do amor exigido. O texto original aponta que estas quatro dimensões não são partes separadas da pessoa, mas diferentes aspectos da totalidade do ser humano, indicando que nenhuma área da vida deve ficar fora deste amor a Deus.
“Amarás”: No texto grego, seguindo o modelo hebraico, esta palavra está no tempo futuro, indicando não apenas uma ordem, mas uma promessa. Após reconhecer a condição de “Israel amado”, o texto indica uma consequência natural: “você amará”, como resultado da aliança divina. Este uso do futuro sugere tanto obrigação quanto capacitação.
Aspectos da Geografia Relevantes no Texto
Embora o texto em si não mencione localidades específicas, o contexto mais amplo situa este diálogo em Jerusalém, no Templo, centro religioso, político e cultural de Israel. Este cenário é significativo, pois o Templo representava a presença de Deus entre seu povo e era o local onde ocorriam os principais debates teológicos e religiosos da época. O fato desta conversa ocorrer no Templo sublinha a autoridade e legitimidade do ensino de Jesus sobre a essência da Lei.
Aspectos Sociais e Culturais Relevantes no Texto
O judaísmo do primeiro século havia desenvolvido um sistema religioso extremamente complexo. Os estudiosos contabilizavam 613 mandamentos nos livros de Moisés (365 ordens e 248 proibições), aos quais acrescentaram milhares de “preceitos dos anciãos”. Este sistema era frequentemente descrito como um “jugo” pesado, tornando a religião uma carga opressiva.
A pergunta do escriba reflete uma busca genuína por simplicidade e essência em meio à complexidade religiosa. Esta busca não era exclusiva deste escriba – havia uma tendência no judaísmo de procurar princípios organizadores dos mandamentos, embora com reservas, pois temia-se que a busca por um mandamento central pudesse ser usada como desculpa para negligenciar os demais.
A resposta de Jesus é significativa porque não inventa algo novo, mas recorre ao que todo judeu já conhecia e recitava diariamente. Ao citar o Shemá (Dt 6.4-5), Jesus fundamenta sua resposta na tradição mais central do judaísmo, mostrando que o essencial já estava presente, mas talvez obscurecido pela multiplicidade de interpretações e regras adicionais.
A união que Jesus faz entre o amor a Deus e o amor ao próximo não era completamente inédita no judaísmo (encontrada em fontes como o “Testamento dos Doze Patriarcas” e nos escritos do filósofo judeu Filo), mas a clareza e ênfase com que Jesus estabelece esta conexão, relacionando-a ao Reino de Deus, é distintiva de seu ensino.
1. Conhecer a Deus e amá-lo por tudo o que ele é
Quem é esse Deus que devemos amar com todo o nosso ser? Jesus nos revela que “Deus é o Criador. Ele criou os seres humanos (Mateus 19:4) e o mundo (Marcos 13:19). Deus sustenta o que ele criou, controlando tudo nos mínimos detalhes, até mesmo os pássaros e os lírios do campo. ‘Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês’ (Mateus 10:29; v. 6:30).”
A revelação bíblica nos apresenta um Deus multifacetado: “Ele é Deus de sabedoria (Lucas 11:49), de justiça (Mateus 6:33), de poder (Mateus 22:29), de ira (João 3:36), de compaixão (Lucas 15:20) e de amor (João 3:16).” Não é uma força impessoal ou um princípio abstrato – “Ele é uma pessoa, não uma simples força. É apresentado como um Pai que ama seus filhos (João 1:12; 16:27).”
O conhecimento de Deus é a raiz de toda piedade e fé verdadeira. Não pode haver temor do Senhor sem algum entendimento de quem Deus é. A verdadeira religião começa com um coração que reconhece a majestade, a santidade e o amor de Deus, revelados plenamente em Jesus Cristo. Conhecer a Deus não é apenas saber coisas sobre Ele, mas é ser transformado por essa revelação, até que o nosso amor por Ele se torne a fonte de toda obediência.
Beeke e Jones, Teologia Puritana, vol. 1, p. 89.
Diante desta revelação, Jesus nos ordena: “Amem a esse Deus. Amem a ele com todas as suas forças e por tudo que ele é”. Este comando pressupõe algo fundamental: “Para amar a Deus, é preciso conhecê-lo. Deus não seria honrado com um amor sem fundamento. Na verdade, isso não existe. Se não soubermos nada acerca de Deus, não haverá nada em nossa mente que desperte amor por ele.”
O conhecimento de Deus é o fundamento do amor a Deus. “Se o amor não for uma conseqüência de conhecer a Deus, não há motivo para considerá-lo amor por Deus. Talvez haja um vago enlevo em nosso coração ou alguma gratidão difusa em nossa alma, mas se esses sentimentos não forem conseqüência de conhecer a Deus, não podemos chamá-lo ‘amor por Deus’.”
Na história da teologia cristã, esta conexão entre conhecimento e amor tem sido enfatizada repetidamente. Agostinho, o grande teólogo do século V, escreveu em suas Confissões: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora!” Para Agostinho, o problema não era a ausência de Deus, mas nossa incapacidade de conhecê-lo verdadeiramente.
No século XVI, João Calvino começava suas Institutas da Religião Cristã afirmando que “o conhecimento de Deus e de nós mesmos são conectados”. Sem o conhecimento verdadeiro de Deus, nosso amor será dirigido a uma imagem falsa, uma idolatria sutil que substitui o Deus vivo por nossas próprias construções mentais.
Deus não pode ser amado se não for antes conhecido. Não o conhecimento puramente especulativo, mas o conhecimento que é gerado pela revelação, aceito pela fé e experimentado no coração pelo Espírito. A fé, o amor e o conhecimento estão tão intimamente ligados que não se pode falar de um sem o outro.
Michael S. Horton, Doutrinas da Fé Cristã, p. 48.
A questão central então se torna: como podemos conhecer a Deus verdadeiramente para amá-lo com todo o nosso ser?
2. Jesus: revelação de Deus, o litmus test (teste decisivo) de nosso amor por Deus
A resposta a essa pergunta está no próprio Jesus. “Jesus veio ao mundo para tornar Deus conhecido, de modo que pudesse ser verdadeiramente amado.” Ele é a revelação suprema de Deus, o meio pelo qual podemos conhecer a Deus de maneira completa e verdadeira.
Em João 14:7-9, encontramos um diálogo revelador: “Se vocês realmente me conhecessem, conheceriam também o meu Pai. Já agora vocês o conhecem e o têm visto”. Disse Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Jesus respondeu: “Você não me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’?”
Deus se revelou plenamente e de forma definitiva em Jesus Cristo. Ele é o Verbo encarnado, a imagem do Deus invisível. Fora de Cristo, não há conhecimento verdadeiro de Deus. Qualquer tentativa de conhecer a Deus que não passe por Cristo é vã e resulta em idolatria.
Martinho Lutero, Obras Selecionadas, Vol. 2, p. 132.
Esta afirmação de Jesus é revolucionária. Ele não é apenas um profeta que fala sobre Deus – Ele é a própria manifestação de Deus em forma humana. “Jesus revela a Deus de forma tão profunda, que o ato de aceitar a Jesus passa a ser o teste para amar a Deus e tê-lo como Pai. ‘Se Deus fosse o Pai de vocês, vocês me amariam…’ (João 8:42).”
Por isso, nosso relacionamento com Jesus se torna o teste definitivo do nosso amor por Deus. “Se não temos a Jesus, não temos a Deus. Jesus tornou-se o parâmetro de nosso conhecimento acerca de Deus e de nosso amor por Deus.” Jesus deixa isso claro quando diz aos seus oponentes:
“…conheço vocês. Sei que vocês não têm o amor de Deus. Eu vim em nome de meu Pai, e vocês não me aceitaram; mas, se outro vier em seu próprio nome, vocês o aceitarão. Como vocês podem crer, se aceitam glória uns dos outros, mas não procuram a glória que vem do Deus único?” (João 5:42-44)
Ele é tão identificado com Deus que “Jesus reflete e exalta a Deus de tal forma, que negá-lo significa negar a Deus.” Não há como separar o amor a Deus do amor a Jesus: “Jesus sabe que seus adversários ‘não têm o amor de Deus [dentro deles]’ porque não o aceitam. ‘… aquele que me rejeita, está rejeitando aquele que me enviou’ (Lucas 10:16). Se eles amassem a Deus, amariam a Jesus.”
A razão para isso é clara: “Jesus tornou Deus conhecido de maneira mais clara e mais abrangente que qualquer outra revelação. Por isso, é impossível amar a Deus e rejeitar a Jesus.”
Ao longo da história da igreja, esta conexão entre conhecer a Jesus e conhecer a Deus tem sido central. Ireneu de Lyon, no século II, escreveu que “a glória de Deus é um ser humano plenamente vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus.” Esta visão de Deus, argumentava Ireneu, vem através de Jesus Cristo, a Palavra encarnada.
Na Reforma Protestante, o princípio “solus Christus” (somente Cristo) afirmava que Jesus é o único mediador entre Deus e os homens, o único caminho para conhecer a Deus. Como dizia Martinho Lutero: “Fora de Cristo, Deus não pode ser encontrado senão em sua ira terrível e eterna”.
Jesus é o cumprimento da promessa divina. Na Oração Sacerdotal, em João 17, ele diz: “Eu os fiz conhecer o teu nome, e continuarei a fazê-lo…” (v. 26). “Esse é o cumprimento tão esperado da profecia na lei de Moisés: ‘O Senhor, o seu Deus, dará um coração fiel a vocês e aos seus descendentes, para que o amem de todo o coração e de toda a alma e vivam’ (Deuteronômio 30:6). Jesus é o cumprimento dessa profecia.”
O conhecimento de Deus só pode ser autêntico se for centrado na revelação que Deus deu de si mesmo em Jesus Cristo. Este conhecimento não é teórico, mas salvífico, pois é conhecimento que transforma e conduz à vida eterna.
Alister McGrath, Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, p. 115.
Portanto, “não podemos amar a Deus sem considerar a revelação de Jesus que muda nosso coração para conhecermos a Deus de tal maneira, que o contemplemos como a uma beleza arrebatadora.”
3. Contemplando a Deus como a uma beleza arrebatadora
O amor a Deus não é uma mera decisão intelectual ou um dever moral. É uma resposta do coração à beleza e à glória de Deus reveladas em Jesus. “Usei a expressão ‘beleza arrebatadora’ para ressaltar dois pontos. O primeiro é que amar a Deus não é uma simples decisão. Não podemos simplesmente decidir amar a música clássica ou a sertaneja, muito menos decidir amar a Deus. A música precisa ser arrebatadora. Se não a amamos, alguma coisa precisa mudar dentro de nós.”
Esta transformação interior é essencial: “Não podemos simplesmente decidir amar a Deus. Ocorre uma mudança dentro de nós, e, em conseqüência dessa mudança, ele se torna atraente de maneira arrebatadora. Sua glória — sua beleza — atrai nossa admiração e nos dá prazer.”
Além disso, “o outro ponto que destaco na expressão ‘beleza arrebatadora’ é que o amor por Deus não é essencialmente um comportamento, e sim uma afeição — não ações, mas deleite. A glória de Deus passa a ser nossa alegria suprema. Começamos, acima de tudo, a querer conhecê-lo, vê-lo, estar com ele e ser semelhante a ele.”
A glória de Deus é, ao mesmo tempo, a sua beleza e a sua bondade. Deus não nos ordena a amá-lo como quem exige admiração, mas como quem se dá a conhecer em esplendor. Sua glória é a fonte de nosso deleite. Vê-lo é encontrar o sentido da existência.
Jonathan Edwards, Afeições Religiosas, p. 101.
Esta compreensão do amor como uma afeição interior, um deleite na beleza de Deus, tem fundamentos sólidos nos ensinos de Jesus. Podemos observar várias evidências disso:
Primeiro, “Jesus faz distinção entre o primeiro e o segundo mandamentos. Ele diz: ‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’ (Mateus 22:37-39). Portanto, amar a Deus não pode ser definido como amar o próximo. São tipos diferentes de amor.”
A relação entre esses dois amores é clara: “O primeiro é o principal e não depende de nenhuma obediência. O segundo é de menor importância e depende de amar a Deus. Eles não estão separados, porque o verdadeiro amor por Deus produzirá sempre amor pelo próximo. Mas são diferentes.” Isso significa que “amar o próximo não é igual a amar a Deus. O amor ao próximo é o extravasamento ou o fruto de amar a Deus. Amar a Deus não é igual a amar o próximo. É uma admiração e um deleite arrebatadores por Deus.”
Segundo, Jesus confronta a hipocrisia de um culto externo sem um coração envolvido: “Bem profetizou Isaías acerca de vocês, hipócritas; como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim'” (Marcos 7:6,7). “Jesus afirma que ações externas — até mesmo as religiosas dirigidas a ele — não são a essência da adoração. Não são a essência do amor. O essencial é o que ocorre no coração. O comportamento externo agrada a Deus quando flui de um coração que o admira espontaneamente e se deleita nele, isto é, quando esse comportamento flui do amor de Deus.”
Terceiro, quando Jesus fala sobre servir a Deus ou ao dinheiro, ele usa uma linguagem emocional forte: “Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mateus 6:24). “O oposto de amar a Deus é ‘odiar’ e ‘desprezar’. São palavras relacionadas a emoções fortes. Dão a entender que o oposto — ‘amar’ — também é uma emoção forte. Por isso, amar a Deus é uma forte emoção interior, não uma simples ação exterior.”
Quarto, Jesus caracteriza aqueles que pedem sinais miraculosos como uma “geração perversa e adúltera” (Mateus 12:39). Por que essa linguagem tão forte? “Porque Deus é o marido de Israel (Ezequiel 16:8), e Jesus é o Deus que veio tentar reaver sua esposa infiel. É por isso que ele refere a si mesmo como o ‘noivo’ (Mateus 25:1).“ Esta metáfora conjugal indica que “nosso amor por Deus, conforme Jesus ordena, deve ser semelhante ao amor da esposa pelo marido, não um simples comportamento externo, mas afeição, admiração e deleite sinceros. Esse amor não deve basear-se no serviço de um escravo”, mas no amor apaixonado descrito em Cântico dos Cânticos: “Estamos alegres e felizes por sua causa; celebraremos o seu amor mais do que o vinho. Com toda a razão você é amado!” (1:4).
A beleza de Deus não é apenas uma categoria estética, mas espiritual. Deus é belo porque é a perfeita harmonia de justiça, verdade, misericórdia e poder. Amar a Deus é desejar estar com Ele, como se deseja estar com algo belo que preenche a alma.
Beeke e Jones, Teologia Puritana, p. 689.
Esta compreensão do amor como deleite em Deus tem sido uma constante na história da teologia cristã. Agostinho escreveu que “o amor é o peso da alma” – aquilo que nos atrai irresistivelmente para o objeto de nosso desejo. Jonathan Edwards, teólogo do século XVIII, desenvolveu extensivamente a ideia de “afeições religiosas” como o coração da verdadeira religião. Para Edwards, o verdadeiro cristão é aquele que foi transformado interiormente para ver e sentir a beleza e a excelência de Deus.
C.S. Lewis, no século XX, escreveu em “Surpreendido pela Alegria” sobre o “desejo de desejo” – uma nostalgia por Deus que ele chamou de “alegria”. Para Lewis, este anseio por Deus é um eco de nosso design original – fomos feitos para encontrar nossa felicidade suprema no próprio Deus.
O amor verdadeiro a Deus nasce do deleite em sua glória. Não é o resultado de uma decisão moral fria, mas o efeito de um coração cativado pela excelência divina. Quando a alma enxerga a Deus em Cristo, ela é levada irresistivelmente a amá-lo.
John Piper, Ousadia na Alegria, p. 83.
4. De todo o coração, alma, entendimento e força
JESUS COMO REVELAÇÃO DE DEUS E TESTE DO NOSSO AMOR
Em Cristo, a revelação de Deus alcança sua expressão mais elevada e mais pessoal. Ele é o Deus que se fez carne, habitou entre nós e revelou o Pai de maneira definitiva. Negar a Cristo é, portanto, recusar a conhecer o Pai, porque é em Cristo que Deus se dá a conhecer de forma plena. Nosso amor por Deus é testado pelo nosso amor a Cristo, pois ele é a imagem visível do Deus invisível.
Michael S. Horton, Doutrinas da Fé Cristã, p. 259.
Quando Jesus ordena que amemos a Deus com todo o nosso ser, ele usa quatro termos que abrangem a totalidade da existência humana: coração, alma, entendimento e força. “Quando ordena que amemos a Deus de todo o coração, alma, entendimento e força, Jesus está dizendo que toda a aptidão inata e toda a capacidade de nosso ser devem expressar a plenitude de nossa afeição por Deus, a plenitude de todas as formas pelas quais o estimamos como um verdadeiro tesouro.”
Embora estes termos se sobreponham em significado, cada um destaca um aspecto particular de nossa humanidade:
“‘Coração’ ressalta o centro de nossa vida volitiva e emocional, sem excluir o pensamento (Lucas 1:51). ‘Alma’ indica nossa vida como um todo, embora às vezes separada do corpo (Mateus 10:28). ‘Entendimento’ salienta nossa capacidade de raciocínio. ‘Força’ destaca a capacidade de fazer esforços vigorosos com o corpo e com a mente (Marcos 5:4; Lucas 21:36).”
A função dessas aptidões e capacidades em relação a amar a Deus é demonstrar esse amor. “Pode ser que ‘coração’ seja mencionado em primeiro lugar por ser considerado, acima de tudo, a fonte do amor expresso por meio da alma (vida), do entendimento (pensamento) e da força (esforço).” De qualquer forma, “o ponto principal é que toda aptidão inata e toda capacidade que temos devem sempre demonstrar que Deus é o nosso mais precioso tesouro.”
Este amor integral e exclusivo a Deus não significa que não podemos amar outras pessoas ou coisas. Significa, porém, que tudo o que amamos deve ser amado em relação a Deus e como expressão do nosso amor por Ele. “Amar a Deus é essencialmente considerá-lo um tesouro. Amá-lo de todo o coração, de toda a alma, de todo o entendimento e de todas as forças significa que todas as nossas aptidões inatas e todas as nossas capacidades o valorizam acima de todas as coisas, de tal forma que, quando consideramos qualquer outra coisa tão preciosa quanto um tesouro, estamos fazendo o mesmo em relação a Deus.”
Em termos práticos, isso significa que “podemos valorizar outras coisas boas até certo ponto, porém não mais do que valorizamos a Deus. Podemos valorizá-las como manifestação do valor que atribuímos a Deus. Se uma de nossas capacidades humanas achar prazer em qualquer pessoa ou em qualquer coisa de tal forma que esse prazer não agrade a Deus, então não amamos a Deus com toda essa capacidade.”
Esta compreensão do amor a Deus encontra eco nos Salmos, que Jesus considerava como apontando para ele mesmo. “É de esperar, portanto, que ele exija um amor que amplie e ponha em prática o que os salmistas sentiram.” Nos Salmos, o amor a Deus é descrito como absolutamente exclusivo: “A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti” (73:25); “Ao Senhor declaro: ‘Tu és o meu Senhor; não tenho bem nenhum além de ti'” (16:2).
O Filho eterno de Deus é a autoexpressão do Pai, a Palavra feita carne. Por meio dele, o amor de Deus se torna visível e encarnado. Crer em Cristo é amar a Deus, e rejeitá-lo é rejeitar aquele que o enviou. O relacionamento com Deus passa necessariamente pela aceitação de seu Filho, pois Deus estabeleceu em Cristo o caminho da reconciliação e do amor.
Herman Bavinck, Dogmática Reformada, vol. 3, p. 284.
Como conciliar essa exclusividade com o amor a outras pessoas e coisas? A resposta está em Salmos 43:4, onde o salmista diz: “Então irei ao altar de Deus, a Deus, a fonte da minha plena alegria”. A expressão “minha plena alegria” significa literalmente “a alegria de meu regozijo” ou “a alegria de minha exultação”. “Isso indica que Deus é a alegria de todas as alegrias. Em meu regozijo por todas as coisas boas que Deus tem feito, ele está no centro de minha alegria, é a alegria de meu regozijo. Quando eu me regozijo em tudo, portanto, existe um regozijo centralizado em Deus.”
Agostinho expressou essa mesma verdade em sua famosa oração: “Pouco te ama quem te ama juntamente com alguma criatura, e não a ama por tua causa”. Todo amor verdadeiro deve ter Deus como seu centro e sua motivação última.
Conclusão
Ao refletirmos sobre o mandamento de Jesus para amar a Deus de todo o coração, alma, entendimento e força, nos confrontamos com o propósito mais profundo da existência humana. Fomos criados para amar a Deus – não de maneira superficial ou parcial, mas com a totalidade do nosso ser. “Cada impulso, cada ato de toda aptidão inata e de toda capacidade deve ser uma expressão de valorizar Deus acima de todas as coisas.”
Este amor não é um sentimento vago ou um comportamento externo, mas uma transformação profunda que nos capacita a contemplar a beleza de Deus e a nos deleitar nele. É um amor que cresce à medida que conhecemos mais profundamente a Deus através de Jesus Cristo, que é a revelação suprema do Pai.
O verdadeiro conhecimento de Deus, de acordo com a Escritura, é de natureza profundamente pessoal. Não é um simples saber intelectual, mas um relacionamento em que a pessoa é possuída por Deus e deseja possuí-lo. É uma comunhão espiritual, uma união vital e eterna com o Deus vivo, em que a alma se deleita nEle e reconhece que Ele é seu maior bem.
Herman Bavinck, Dogmática Reformada, vol. 2, p. 180.
O amor a Deus, como Jesus o descreve, é a fonte e o fundamento de toda a vida cristã. É dele que flui o amor ao próximo e todas as outras virtudes. É ele que dá sentido e propósito para todas as nossas atividades e relacionamentos.
Em um mundo cheio de distrações e tentações, Jesus nos adverte contra o esfriamento deste amor: “Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará…” (Mateus 24:12). É uma advertência que devemos levar a sério, especialmente em nossa época de secularismo, materialismo e individualismo.
O caminho para manter vivo e ardente esse amor é manter os olhos fixos em Jesus, através de quem conhecemos a Deus. “Lembre-se: nós o amamos até o ponto em que o conhecemos. E lembre-se de que somente Jesus pode torná-lo conhecido verdadeira e inteiramente (Mateus 11:27). Olhe firme para Jesus e ore para que ele lhe revele Deus como uma beleza arrebatadora. ‘Quem me vê, vê o Pai’ (João 14:9).”
O que a alma ama, ela imita. O que ela imita, ela se torna. A quem a alma ama, com ele se torna uma só coisa. Por isso, o fim último do homem é o amor de Deus, porque somente no amor de Deus o homem se une com o Bem supremo, que o transforma e o eleva acima de si mesmo.
Agostinho, De Moribus Ecclesiae Catholicae, cap. 26.
Aplicação
A religião verdadeira não consiste meramente em uma obediência exterior ou no assentimento a certas verdades. Ela é uma afeição do coração, uma orientação interior da alma para com Deus, em que Ele se torna o maior prazer, a mais alta alegria, o mais intenso desejo do homem.
Jonathan Edwards, Afeições Religiosas, p. 102.
Como podemos aplicar este mandamento supremo em nossa vida diária? Aqui estão algumas sugestões práticas:
- Cultive o conhecimento de Deus. Dedique-se diariamente à leitura e meditação das Escrituras, especialmente os Evangelhos, onde Jesus nos revela o Pai. Estude também livros que aprofundam nosso conhecimento teológico, pois conhecimento superficial produz amor superficial. Lembre-se: “Para amar a Deus, é preciso conhecê-lo. Deus não seria honrado com um amor sem fundamento.”
- Faça de Jesus o centro de sua vida espiritual. Jesus é a revelação suprema de Deus, o meio pelo qual conhecemos o Pai. Quando oramos, devemos sempre ter em mente que é através de Jesus que temos acesso a Deus. Quando lemos as Escrituras, devemos sempre buscar ver como elas apontam para Cristo. Como Jesus mesmo ensinou: “Vocês estudam cuidadosamente as Escrituras, porque pensam que nelas vocês têm a vida eterna. E são as Escrituras que testemunham a meu respeito” (João 5:39).
- Examine seus afetos. Pergunte-se regularmente: O que mais amo? O que mais desejo? O que ocupa meus pensamentos e sonhos? As respostas a essas perguntas revelarão quem ou o que realmente ocupa o trono do seu coração. Se não for Deus, é necessária uma reorientação das afeições.
- Pratique a adoração como um estilo de vida. A adoração não se limita aos momentos de culto formal, mas deve permear toda a vida. Aprenda a ver a beleza de Deus nas pequenas coisas da vida cotidiana e a responder com gratidão e louvor. Como disse C.S. Lewis, “o prazer é o eco da glória de Deus na alma humana”.
- Integre todas as dimensões de sua vida. Amar a Deus de todo o coração, alma, entendimento e forças significa que não deve haver compartimentos em nossa vida onde Deus não reine. Nosso trabalho, nosso lazer, nossos relacionamentos, nossos pensamentos – tudo deve ser vivido como expressão de amor a Deus.
- Cuide das influências em sua vida. Aquilo que contemplamos constantemente molda nossos afetos. Escolha cuidadosamente o que lê, assiste e ouve. Busque influências que direcionem seu coração para Deus e evite aquelas que o afastam dele.
- Pratique a comunhão com Deus. O amor se desenvolve no contexto de um relacionamento pessoal. Reserve tempo para estar a sós com Deus, não apenas para fazer pedidos ou ler a Bíblia, mas para simplesmente desfrutar de sua presença. A oração contemplativa e a meditação bíblica são práticas que podem ajudar nesse sentido.
- Ame o que Deus ama. Se amamos a Deus, amaremos também o que ele ama – seu povo, sua criação, sua justiça, sua verdade. O amor a Deus deve se expressar em amor ao próximo e em compromisso com os valores do Reino de Deus.
- Combata a idolatria em todas as suas formas. Qualquer coisa que ocupe em nossa vida o lugar que pertence exclusivamente a Deus é um ídolo. Esteja atento aos ídolos sutis de nossa cultura – sucesso, conforto, prazer, relacionamentos, tecnologia – e resista à tendência de colocá-los acima de Deus.
- Busque renovação constante. O amor precisa ser constantemente reavivado. Como Jesus advertiu, o amor de muitos pode esfriar. Reconheça os sinais de esfriamento – formalismo religioso, perda de alegria na presença de Deus, obediência por dever e não por deleite – e busque a renovação através do Espírito Santo.
Amar a Deus de todo o coração, alma, entendimento e forças não é uma conquista instantânea, mas uma jornada de toda a vida. É uma jornada que vale a pena, pois como disse Agostinho, “Tu nos fizeste para ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti.” Somente quando amamos a Deus com todo o nosso ser encontramos a verdadeira plenitude de vida para a qual fomos criados.
Somente Cristo! Pr. Reginaldo Soares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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- Agostinho. Confissões. Trad. J. Oliveira. São Paulo: Paulus, 1999.
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- Ireneu de Lyon. Contra as heresias. Tradução de Carlos Arthur do Prado Meyer. São Paulo: Paulus, 2005. (Coleção Patrística, v. 9)
- Bavinck, Herman. Dogmática Reformada. Vol. 1-4. São Paulo: Cultura Cristã, 2020.
- Beeke, Joel R.; Jones, Mark. Teologia Puritana. São Paulo: Editora Fiel, 2021.
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- McGrath, Alister E. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica. São Paulo: Vida Nova, 2007.
- Piper, John. Ousadia na Alegria. São Paulo: Cultura Cristã, 2008.

Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!
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