LIÇÃO 11: TENHAM MEDO.

Descubra como o temor nos conduz à fé em Cristo, transformando-se em confiança inabalável, um dom divino que nos protege e nos aproxima do Salvador.

LIÇÃO 11: TENHAM MEDO.

Texto Bíblico Base: Mateus 10:26-31.

“Portanto, não tenham medo deles. Não há nada escondido que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a ser conhecido. O que eu lhes digo na escuridão, falem à luz do dia; o que é sussurrado em seus ouvidos, proclamem dos telhados. Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno. Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês. Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados. Portanto, não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais!”

Texto Bíblico Áureo: Provérbios 9:10

“O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é entendimento.”

Textos Bíblicos Relacionados:

  1. Lucas 12:4-7. “Eu lhes digo, meus amigos: Não tenham medo dos que matam o corpo e depois nada mais podem fazer…”
  2. Isaías 8:12-13. “Não chamem conspiração a tudo o que esse povo chama conspiração; não temam aquilo que eles temem, nem se apavorem. O Senhor dos Exércitos é que vocês devem considerar santo…”
  3. Salmo 111:10. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria; todos os que cumprem os seus preceitos revelam bom senso…”
  4. Apocalipse 20:11-15. “Então vi um grande trono branco e aquele que nele estava assentado… E os mortos foram julgados…”
  5. Hebreus 10:31. “Terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo!”
  6. João 3:36. “Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.”
  7. 2 Coríntios 5:10-11. “Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo… Visto que conhecemos o temor do Senhor, procuramos persuadir os homens…”

Explicação do Texto Básico (Mateus 10:26-31)

Contexto Histórico e Bíblico

O texto de Mateus 10:26-31 faz parte do discurso missionário de Jesus, conhecido como o “Discurso de Envio” (Mateus 10:1-42), dirigido aos doze apóstolos. Este discurso ocorre durante o ministério galileu de Jesus, quando ele envia seus discípulos em missão pela primeira vez. No contexto mais amplo do Evangelho de Mateus, este capítulo segue os relatos dos milagres e do ministério compassivo de Jesus (capítulos 8-9) e antecede as crescentes tensões com os líderes religiosos (capítulos 11-12).

O trecho específico (versículos 26-31) contém palavras de encorajamento para os discípulos diante das perseguições que enfrentariam. Estas palavras de estímulo estão inseridas estrategicamente entre advertências sobre a rejeição (10:16-25) e exortações sobre a necessidade de confessar Cristo publicamente (10:32-33). Este contexto revela a preocupação de Jesus em preparar seus seguidores para um ministério desafiador, onde enfrentariam oposição, mas contariam com a vigilância divina.

Termos Relevantes no Texto

  1. “Temais” (φοβέω/phobeō em grego) – Aparece três vezes nesta passagem (vv. 26, 28 e 31), estabelecendo um padrão retórico significativo. Este verbo vai além do mero sentimento de medo, carregando também noções de reverência e respeito. A repetição de “não temais” (μὴ φοβεῖσθε) serve como refrão que estrutura todo o trecho, criando três palavras distintas de estímulo.
  2. “Encoberto” e “oculto” (καλυπτόμενον/kalyptomenon e κρυπτὸν/krypton) no versículo 26 – Formam um paralelismo semântico típico da literatura hebraica. Estas palavras referem-se à natureza temporariamente escondida da mensagem do Reino, que posteriormente seria revelada amplamente.
  3. “Alma” (ψυχὴν/psychēn) no versículo 28 – No contexto hebraico, não indica uma entidade separada do corpo, mas a totalidade da pessoa, sua vida e essência. Jesus estabelece uma distinção crucial entre o que os perseguidores podem fazer (matar o corpo) e o que só Deus pode fazer (determinar o destino eterno da pessoa inteira).

Expressões Relevantes no Texto

  1. “O que vos digo às escuras, dizei-o a plena luz” (v. 27) – Esta expressão contém uma metáfora de contraste entre escuridão e luz que reflete a transição do ministério inicialmente restrito de Jesus para a futura proclamação universal do evangelho. O ensinamento inicialmente privado (“às escuras”) seria posteriormente proclamado publicamente (“a plena luz”).
  2. “Proclamai-o dos eirados” (v. 27) – Esta expressão enraíza-se na arquitetura Palestina do primeiro século, onde os telhados planos funcionavam como espaços públicos. A imagem evoca tanto o costume do anúncio do sábado feito do telhado mais alto da cidade pelo empregado da sinagoga, quanto a prática de tradução nas sinagogas, onde o intérprete ouvia sussurros e os proclamava em voz alta.
  3. “Fazer perecer no inferno” (v. 28) – O termo grego para “inferno” aqui é γέεννα (Geena), referência ao Vale de Hinom, local associado historicamente aos sacrifícios pagãos e que se tornou símbolo do juízo divino. A expressão completa destaca o poder absoluto de Deus sobre o destino eterno, em contraste com o poder limitado dos perseguidores.

Aspectos da Geografia Relevantes no Texto

Embora o texto não mencione locais geográficos específicos, várias referências arquitetônicas e espaciais são importantes para a compreensão:

  1. Os “eirados” (telhados) mencionados no versículo 27 referem-se às coberturas planas das casas palestinas. Na arquitetura do Oriente Médio antigo, os telhados serviam como extensões úteis da casa, locais de descanso, socialização e, como o texto sugere, plataformas elevadas para anúncios públicos. A altura destes telhados permitia que a voz alcançasse um público maior nas ruas estreitas das cidades palestinas.
  2. A menção implícita à sinagoga (no contexto da tradução) refere-se ao centro da vida religiosa e social judaica. As sinagogas dispersas por toda a Palestina tinham um papel crucial na preservação e transmissão da fé judaica, especialmente após o hebraico deixar de ser a língua cotidiana, sendo substituído pelo aramaico.

Aspectos Sociais e Culturais Relevantes no Texto

  1. A prática de tradução nas sinagogas – O texto alude à prática litúrgica judaica onde o leitor das escrituras em hebraico sussurrava o texto para um tradutor (Meturgeman), que então o proclamava em aramaico para a congregação. Esta prática desenvolveu-se após o exílio babilônico, quando o hebraico deixou de ser a língua cotidiana. Jesus utiliza esta familiar prática cultural como metáfora para o trabalho dos discípulos: o que recebem em contexto privado deve ser proclamado publicamente.
  2. O sistema monetário – A menção aos “dois pardais por um asse” (v. 29) reflete o sistema econômico da época. O asse (assarion) era uma moeda romana de pouco valor, equivalente a 1/16 de um denário (o pagamento diário comum de um trabalhador). Esta referência concreta ao valor ínfimo dos pardais enfatiza a profundidade do cuidado divino mesmo com as criaturas consideradas insignificantes.
  3. O sacrifício de purificação – A referência aos pardais evoca também o contexto ritual de Levítico 14:4-7, onde dois pássaros eram utilizados na cerimônia de purificação do leproso. Este pano de fundo aumenta a riqueza simbólica da passagem, sugerindo que mesmo as criaturas usadas em rituais menores são objeto da atenção divina.

A passagem completa, portanto, entrelaça elementos da vida cotidiana Palestina com profundas verdades teológicas sobre o cuidado providencial de Deus, a natureza da missão apostólica e a coragem necessária em face da oposição. Jesus utiliza imagens familiares e experiências culturais para transmitir uma mensagem de confiança absoluta na soberania e no cuidado pessoal de Deus.

INTRODUÇÃO

O temor do Senhor não é apenas o princípio da sabedoria, mas o fundamento de toda piedade. É um temor que não repele, mas atrai; não fere, mas cura; não anula a confiança, mas a purifica. Onde Deus é conhecido em sua majestade, o homem se curva em reverência, mas também descansa em segurança.”

João Calvino, Institutas da Religião Cristã, Livro III. Capítulo XX. Seção 27.

Na literatura universal, poucos autores conseguiram capturar a tensão entre o temor e o amor como C.S. Lewis em sua obra “As Crônicas de Nárnia”. No quarto livro da série, “O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa”, há uma cena emblemática em que as crianças perguntam ao Sr. Castor sobre Aslam, o grande leão que representa Cristo na narrativa. Lucy, a mais nova, pergunta com certa apreensão se Aslam é seguro, ao que o Sr. Castor responde: “Seguro? Quem disse qualquer coisa sobre seguro? É claro que ele não é seguro. Mas ele é bom. Ele é o Rei, eu digo a você.” Esta passagem literária nos conduz diretamente ao paradoxo central do nosso estudo de hoje: como conciliar o temor santo a Deus com a confiança em seu amor paternal?

IMAGEM TENHAM MEDO ASLAN Filme O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.
O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.

Este paradoxo está no coração do texto que estudaremos hoje. Nas palavras de Jesus em Mateus 10:28, somos ordenados a temer Aquele que pode destruir tanto o corpo como a alma no inferno. No entanto, apenas três versículos depois, o mesmo Jesus nos diz para não temermos, pois nosso Pai celestial cuida até mesmo dos pardais e valoriza infinitamente mais os seus filhos. Como podemos entender esta aparente contradição? Como podemos simultaneamente temer a Deus e confiar nEle como Pai amoroso?

A tensão entre o temor e a confiança não é uma contradição, mas sim o fundamento para uma relação adequada com o Deus que é simultaneamente santo e amoroso, justo e misericordioso, temível e íntimo. Esta lição busca compreender o significado profundo deste paradoxo e como ele deve moldar nossa devoção e caminhada cristã.

I. AS DIMENSÕES DO TEMOR NA TEOLOGIA BÍBLICA

A. O Temor Reverencial versus o Medo Paralisante

Quando Jesus nos ordena “tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno” (Mateus 10:28), ele está fazendo mais do que simplesmente sugerir um “respeito” a Deus. A linguagem que ele emprega é forte e deliberada. Na passagem paralela em Lucas 12:5, Jesus reforça: “temam aquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar no inferno. Sim, eu lhes digo, esse vocês devem temer.”

É crucial notar que Jesus não está promovendo um medo patológico ou paralisante de Deus. Este tipo de medo faria com que nos afastássemos de Deus, quando o propósito do temor santo é justamente o contrário: nos aproximar devidamente d’Ele. O temor santo é aquele que nos leva a compreender quem Deus realmente é – em toda a sua santidade, poder e justiça – e a responder adequadamente a esta revelação.

O teólogo reformado Tomás de Aquino, em sua obra “Suma Teológica”, faz uma distinção importante entre diferentes tipos de temor:

“Existe o temor servil, que é o medo do castigo, e existe o temor filial, que é o temor de desagradar. O temor servil conduz à escravidão. O temor filial conduz à obediência amorosa. Não devemos ter medo de Deus no sentido de que ele nos irá fazer mal arbitrariamente, mas devemos temê-lo no sentido de reverenciar sua santidade e reconhecer o perigo real de ofendê-lo.”

São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 19, a. 2.

Esta distinção é fundamental para entendermos o mandamento de Jesus. Quando ele nos ordena a temer a Deus, não está nos convidando para uma relação de terror, mas para uma compreensão adequada do caráter divino que conduz à reverência e obediência.

B. Jesus e o tema do Inferno: Um alerta amoroso

“Jesus falou frequentemente sobre o inferno, não porque fosse cruel ou insensível, mas porque o amava profundamente. O inferno, para Jesus, não era uma metáfora ou exagero pedagógico. Era uma realidade devastadora, da qual ele veio para nos salvar. Suas advertências não eram ameaças vazias, mas clamores de um coração quebrantado, exortando pecadores a fugirem da ira vindoura.”

Michael Horton, Doutrinas da Fé Cristã, p. 537.

É digno de nota que Jesus fala do inferno mais que qualquer outra pessoa na Bíblia. Ele se refere a este lugar de julgamento com imagens vívidas e alarmantes. Em seus ensinamentos, Jesus descreve o inferno como um lugar de “trevas, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 8:12). Esta imagem é particularmente impactante quando consideramos que todas as alegrias que associamos com a luz serão completamente removidas, e todos os medos que associamos com a escuridão serão intensificados. O resultado será um sofrimento tão intenso que fará a pessoa ranger os dentes em angústia.

Jesus também caracteriza o inferno como “fornalha ardente” para onde serão enviados os que praticam o mal na ocasião de seu retorno:

“O Filho do homem enviará os seus anjos, e eles tirarão do seu Reino tudo o que faz tropeçar e todos os que praticam o mal. Eles os lançarão na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13:41-42).

Outras referências ao inferno na boca de Jesus incluem “o fogo do inferno” (Mateus 5:22), “o fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos” (Mateus 25:41), “o inferno, onde o fogo nunca se apaga” (Marcos 9:43), e “o castigo eterno” (Mateus 25:46).

Esta última descrição é especialmente dolorosa e assustadora porque Jesus a coloca em contraste direto com a “vida eterna”: “E estes irão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna” (Mateus 25:46). Esta contraposição revela a magnitude da tragédia que representa a perdição eterna. Da mesma forma que a “vida eterna” será uma experiência infinita de prazer na presença de Deus, o “castigo eterno” implicará em sofrimento infinito sob a ira divina (João 3:36; 5:24).

Importante salientar que Jesus não fala sobre o inferno por sadismo ou para aterrorizar seus ouvintes. Ao contrário, ele o faz como um médico que adverte sobre as terríveis consequências de não tratar uma doença grave. É um alerta motivado pelo amor, para que as pessoas possam evitar este terrível destino através do arrependimento e da fé.

C. O Inferno como expressão da justiça divina e não mera consequência natural

“A punição eterna não é a simples consequência natural do pecado, como se Deus apenas deixasse o homem entregue à sua própria sorte. É uma resposta ativa da justiça de Deus, que vindica sua santidade. O inferno é o juízo divino sobre a criatura rebelde, não um vazio de Deus, mas a manifestação de sua ira justa contra o pecado não perdoado.”

Herman Bavinck, Dogmática Reformada, vol. 4, p. 709.

Um ponto central para entendermos corretamente o temor a Deus é compreender que o inferno não é simplesmente uma consequência natural das más escolhas humanas. Existe uma tendência contemporânea de apresentar o inferno como um resultado automático da rejeição a Deus, como se Deus fosse um observador passivo que simplesmente respeita a “escolha” humana de viver sem Ele.

Embora seja verdade que as pessoas fazem escolhas que as conduzem ao inferno, Jesus ensina claramente que tais escolhas são realmente merecedoras do inferno. Em suas palavras: “qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco [é culpado, é merecedor] de ir para o fogo do inferno” (Mateus 5:22). Por isso Jesus se refere ao inferno como um “castigo” (Mateus 25:46).

O castigo não é uma consequência natural autoimposta (como o câncer de pulmão é para o fumante), mas uma punição deliberada derivada da justa ira de Deus (semelhante ao juiz que sentencia um criminoso). As ilustrações que Jesus emprega para demonstrar como as pessoas vão para o inferno não sugerem uma consequência automática, mas o exercício da justa indignação divina.

Por exemplo, Jesus conta a história de um servo cujo senhor viajou. O servo, pensando que o senhor estava demorando, começou “a bater em seus conservos e a comer e a beber com os beberrões”. Jesus então adverte (referindo-se à sua repentina segunda vinda): “O senhor daquele servo virá num dia em que ele não o espera e numa hora que não sabe. Ele o punirá severamente e lhe dará lugar com os hipócritas, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 24:48-51). Esta parábola representa claramente a ira legítima e santa de Deus, acompanhada de punição deliberada. Jesus colocará (θήσει – “colocará”, “designará”) o servo infiel com os hipócritas.

Em outra parábola, Jesus se compara a um nobre que partiu para ser coroado rei e depois retornar: “Um homem de nobre nascimento foi para uma terra distante para ser coroado rei e depois voltar. […] Mas os seus súditos o odiavam e por isso enviaram uma delegação para lhe dizer: ‘Não queremos que este homem seja nosso rei'” (Lucas 19:12,14).

Quando o nobre retorna, depois de ter sido coroado rei, ele castiga aqueles que o rejeitaram: “E aqueles inimigos meus, que não queriam que eu reinasse sobre eles, tragam-nos aqui e matem-nos na minha frente!” (Lucas 19:27).

Estas ilustrações enfatizam que o inferno não é uma simples “enfermidade” resultante de maus hábitos, mas uma expressão legítima da ira santa de um Rei justo contra aqueles que se recusam a reconhecer sua autoridade e a obedecer às suas ordens misericordiosas.

Foi por isso que Jesus advertiu enfaticamente: “tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno” (Mateus 10:28). O temor que Ele ordena não é o medo do inferno como consequência natural, mas o temor reverencial a Deus como juiz santo que condena justamente os pecadores impenitentes.

II. O PARADOXO DO TEMOR E DA CONFIANÇA

A. A convivência do temor e da confiança em Deus

“O temor do Senhor e a confiança em seu amor não se excluem; pelo contrário, são como dois pilares sobre os quais repousa o edifício da verdadeira piedade. Temer a Deus não é fugir dele como um escravo foge de seu carrasco, mas é aproximar-se dele com reverência, sabendo que Ele é santo e justo, e ainda assim cheio de misericórdia para com os que o temem.”

Herman Bavinck, Dogmática Reformada, vol. 1, p. 214.

Um aspecto desconcertante dos ensinamentos de Jesus sobre o temor a Deus é como ele coloca lado a lado, sem transição, duas instruções aparentemente contraditórias. Logo após ordenar “Tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno” (Mateus 10:28), Jesus imediatamente acrescenta palavras de profundo conforto: “Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Contudo, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do Pai de vocês. Até os cabelos da cabeça de vocês estão todos contados. Portanto, não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais!” (Mateus 10:29-31).

Sem qualquer pausa significativa entre as afirmações, Jesus passa de “Tenham medo do Deus que os lança no inferno” para “Não tenham medo, porque Deus é o Pai de vocês e os valoriza mais que aos pardais e conhece suas mais ínfimas necessidades”. Esta justaposição não é acidental, mas intencional. Jesus está nos ensinando algo profundo sobre a natureza do relacionamento adequado com Deus.

Na verdade, o cuidado paternal de Deus, que tudo provê, é um dos mais belos e penetrantes temas dos ensinamentos de Jesus: “Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; quando, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? […] Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer?’ ou ‘Que vamos beber?’ ou ‘Que vamos vestir?’ Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas.” (Mateus 6:26,31,32)

Para compreendermos esta aparente contradição, precisamos entender que Jesus não está se contradizendo, mas revelando as múltiplas dimensões de um relacionamento sadio com Deus. O temor santo e a confiança filial não são mutuamente exclusivos, mas complementares. São como dois lados da mesma moeda, ou melhor, duas perspectivas do mesmo Deus infinito.

B. Como temer a Deus e confiar nele simultaneamente

“A perfeita comunhão com Deus exige tanto o temor quanto a confiança. O temor sem confiança nos lança em desespero; a confiança sem temor nos conduz à presunção. A alma que ama a Deus aprende a temê-lo com reverência amorosa, e a temê-lo de forma a se lançar com mais fervor nos braços de sua misericórdia.”

Michael Horton, Doutrinas da Fé Cristã, p. 462.

O que Jesus tinha em mente ao colocar estas duas verdades aparentemente contraditórias lado a lado? Não pode ser simplesmente que o “temor de Deus” significa apenas “respeito a Deus” em vez de “ter medo dele”, pois estas palavras não se encaixariam em sua advertência: “temam aquele que, depois de matar o corpo, tem poder para lançar no inferno. Sim, eu lhes digo, esse vocês devem temer” (Lucas 12:5).

Certamente, é verdade que devemos ter respeito por Deus – devemos reverenciar sua santidade, poder e sabedoria. Mas existe também um temor genuíno que pode coexistir harmoniosamente com a doce paz e confiança em Deus como Pai.

O ponto crucial para entendermos esta coexistência é perceber que o próprio Deus afasta sua ira de nós por meio de Cristo. Não experimentamos paz porque decidimos ignorar ou esquecer a ira divina; experimentamos paz genuína quando Deus mesmo afasta sua justa ira de nós mediante a obra redentora de seu Filho.

Deus realizou isto quando enviou Jesus para morrer em nosso lugar, absorvendo em si mesmo a ira divina para que ela fosse removida de todo aquele que crê nele: “Da mesma forma com o Moisés levantou a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do homem seja levantado [na cruz para morrer], para que todo o que nele crer tenha a vida eterna [não ira]. […] Quem crê no Filho tem a vida eterna; já quem rejeita o Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.” (João 3:14,15,36)

Quando Jesus bradou na cruz: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Marcos 15:34), ele estava experimentando, como nosso substituto, a terrível ira do abandono divino – mesmo não tendo feito absolutamente nada para merecer tal castigo. E quando, finalmente, proclamou na cruz: “Está consumado!” (João 19:30), estava declarando que a dívida de nossa salvação – nossa libertação da ira de Deus e o direito de recebermos as bênçãos divinas – estava completamente paga.

“A cruz de Cristo não anula o temor do Senhor, mas o transforma. Aquele que contempla o Cordeiro imolado compreende, mais do que nunca, a gravidade do pecado e a majestade da justiça divina. Não há temor mais puro do que aquele que nasce à sombra da cruz, onde a ira e a graça de Deus se encontram.”

John Stott, A Cruz de Cristo, p. 135.

Jesus afirmou que veio ao mundo para “dar a sua vida em resgate por muitos” (Mateus 20:28). Naquele momento na cruz, o preço total do resgate foi pago, e a obra de absorver e remover a ira de Deus foi consumada. Agora, ele declara que todo aquele que nele crê tem comunhão eterna com Deus e está completamente seguro de que a ira do Juiz foi satisfeita: “não será condenado, mas já passou da morte para a vida” (João 5:24).

C. O medo da falta de fé: Uma proteção divina

“O temor saudável de Deus é um dom, uma sentinela que vigia a entrada do coração para impedir a incredulidade. Quando o crente começa a se desviar, é esse santo temor que o chama de volta, que o desperta do torpor da autoconfiança e o conduz novamente à dependência humilde do Evangelho.”

Jonathan Edwards, Obras Escolhidas, vol. 2, p. 291.

Considerando que a ira de Deus foi afastada de nós em Cristo, do que então deveríamos ter medo? A resposta surpreendente é: devemos temer a falta de fé.

Para os seguidores de Jesus, temer a Deus significa, paradoxalmente, temer a terrível possibilidade de não confiar naquele que pagou um preço tão elevado por nossa paz. Em outras palavras, um dos meios que Deus utiliza para preservar nossa paz e nossa confiança em Jesus é precisamente o temor do que Deus poderia justamente fazer conosco se não crermos.

Não vivemos em constante ansiedade porque, de fato, cremos. Descansamos na obra suficiente e completa de Jesus e no cuidado soberano de nosso Pai celestial. Contudo, naqueles momentos em que a incredulidade nos assalta, um temor santo se ergue em nosso interior como uma espécie de alarme, advertindo-nos de que estamos cometendo uma insensatez ao não confiar naquele que nos amou e entregou seu Filho à morte para que pudéssemos viver livres de ansiedade. Se confiarmos nele, se o amarmos e nos lançarmos em seus braços poderosos, ele será tudo aquilo que poderíamos desejar em um amigo. Mas se decidirmos que existem coisas mais importantes que ele e tentarmos fugir de sua presença, ele se indignará justamente.

Jesus declarou com absoluta clareza em Lucas 19:27: “E aqueles inimigos meus, que não queriam que eu reinasse sobre eles, tragam-nos aqui e matem-nos na minha frente!”. Estas palavras severas não contradizem o amor de Cristo, mas expressam a seriedade infinita de rejeitar o Reino e a salvação que ele oferece.

III. O PECADO COMO OFENSA INFINITA À MAJESTADE DE DEUS

A. A verdadeira gravidade do pecado

“O pecado contra Deus é uma ofensa infinita porque é cometido contra um ser infinitamente excelente. A gravidade de um pecado não se mede apenas pela natureza do ato, mas principalmente pela dignidade daquele contra quem ele é cometido. Se o ser contra quem pecamos é infinitamente digno, então a ofensa tem proporções infinitas.”

Jonathan Edwards, “The Nature of True Virtue”, p. 70.

O mandamento de Jesus para temermos aquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno nos ensina que o pecado é infinitamente mais grave do que normalmente imaginamos. Muitas pessoas consideram o inferno como um castigo desproporcional para nossos pecados porque não enxergam o pecado como ele realmente é, nem compreendem quem Deus verdadeiramente é.

Jesus nos revela o que dirá àqueles que serão enviados para o inferno: “Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se de mim vocês, que praticam o mal!” (Mateus 7:23). São aqueles que “praticam o mal”, isto é, que transgridem a lei divina.

É fundamental compreendermos que o pecado é, primeiramente, uma ofensa contra Deus, e somente em segundo lugar uma ofensa contra o próximo. Portanto, a verdadeira gravidade do pecado origina-se do que ele afirma a respeito de Deus.

Deus é infinitamente digno de honra, glória e adoração. O pecado, entretanto, declara o oposto. O pecado essencialmente afirma que existem coisas mais desejáveis, mais prazerosas e mais dignas de nossa devoção do que o próprio Deus. Este é o cerne da ofensa.

B. O pecado como desonra à Infinita dignidade de Deus

“Uma injúria contra uma criatura finita tem uma gravidade limitada. Mas uma injúria contra um Ser infinito, absolutamente perfeito e santo, não pode ser medida por padrões humanos. O pecado é tão monstruoso quanto a santidade de Deus é pura; tão diabólico quanto a glória divina é resplandecente.”

Stephen Charnock, Discourses upon the Existence and Attributes of God, Vol. 2, p. 169.

Quão sério é esse desprezo à dignidade de Deus? Na jurisprudência humana, a gravidade de um crime é determinada, em parte, pela dignidade da pessoa e do cargo que está sendo desrespeitado. Um insulto a um colega de trabalho é uma ofensa; um insulto idêntico dirigido a um chefe de estado é considerado muito mais grave.

Seguindo esta lógica, se a pessoa que está sendo rejeitada e desonrada é infinitamente digna, infinitamente majestosa, infinitamente santa e ocupa um cargo de infinita dignidade e autoridade (como o Criador e Sustentador de todas as coisas), então rejeitá-la constitui uma ofensa infinitamente ultrajante. Consequentemente, tal ofensa merece uma punição proporcional à dignidade ofendida – uma punição infinita.

A intensidade das advertências de Jesus acerca do inferno não é uma reação exagerada a pequenas falhas. Ao contrário, suas palavras são um testemunho ao valor infinito de Deus e à natureza horrivelmente ultrajante do pecado humano.

O teólogo Jonathan Edwards, no seu famoso sermão “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”, expressou esta verdade ao afirmar:

“A razão pela qual os pecadores não caem no inferno a cada momento é simplesmente porque o tempo determinado por Deus ainda não chegou… Não há outro motivo a ser dado do porquê você não foi ao inferno desde que acordou esta manhã, senão que a mão de Deus o segurou.”

Esta linguagem forte nos recorda que a paciência divina é uma expressão da graça, não uma indicação de que o pecado não seja tão grave assim. A severidade da punição é proporcional à majestade da Pessoa ofendida.

C. O ponto de contato entre a justiça e o amor divinos: A Cruz

“O pecado é tão maligno quanto a glória de Cristo é valiosa. E a razão pela qual a punição é eterna não é porque a alma do homem vale infinitamente, mas porque o Deus contra quem o pecado é cometido possui dignidade infinita. O inferno é a resposta proporcional de um Deus infinitamente santo a uma rebelião contra seu valor infinito.”

John Piper, Deus é o Evangelho, p. 89.

O paradoxo entre o temor da justiça de Deus e a confiança em seu amor é perfeitamente resolvido na cruz de Cristo. Ali vemos, simultaneamente, a expressão máxima da justiça divina (pois o pecado foi punido completamente) e a demonstração suprema do amor divino (pois o próprio Deus, em Cristo, absorveu aquela punição em nosso lugar).

O apóstolo Paulo expressa esta verdade de forma eloquente: “Deus ofereceu [Cristo] como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância, havia deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; mas, no presente, demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Romanos 3:25-26).

Na cruz, vemos que Deus é simultaneamente “justo e justificador” – preservando sua santidade enquanto oferece misericórdia aos pecadores. Este é o fundamento teológico que nos permite temer a Deus em sua justiça e, ao mesmo tempo, confiar plenamente em seu amor paternal.

É por isso que podemos olhar para o Juiz que poderia justamente nos condenar, e chamá-lo de “Pai”. Como disse Jesus: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino” (Lucas 12:32).

IV. O TEMOR SANTO COMO DOM DIVINO

A. O temor como expressão da misericórdia divina

“O temor de Deus não é um pavor servil que afasta a alma, mas uma reverência santa que a aproxima. É o temor de um filho que se curva diante da majestade de um pai amoroso, não por medo do castigo, mas por temor de entristecê-lo. Este é o temor que preserva a fé da presunção e a piedade da hipocrisia.”

Thomas Watson, The Godly Man’s Picture, p. 124.

É vital que prestemos atenção ao mandamento claro de Jesus: devemos temer aquele que pode destruir alma e corpo no inferno. Mas devemos enxergar este mandamento não como uma ameaça cruel, e sim como uma expressão da misericórdia divina.

Que admirável é esta advertência de Jesus! Ele não quer que ignoremos a realidade da ira vindoura. Ele não deseja que sejamos como aquelas pessoas que, ao serem avisadas sobre um furacão que se aproxima, decidem não evacuar a área e acabam perdendo suas vidas. Jesus adverte sobre o perigo justamente porque deseja nossa salvação.

Mas Jesus faz muito mais do que apenas advertir. Ele também resgata. Este é o efeito mais benéfico do temor santo: ele nos desperta para nossa necessidade desesperadora de ajuda e nos direciona para o único Salvador suficiente em todos os aspectos – o próprio Jesus Cristo.

B. Do temor à confiança: A jornada da fé

“É necessário que sejamos convencidos de quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo, para que busquemos com diligência o refúgio que nos é oferecido em Cristo. O temor do Senhor é o princípio da sabedoria justamente porque nos leva a considerar a gravidade do pecado, a santidade de Deus e a urgência da reconciliação com Ele.”

John Owen, The Mortification of Sin, p. 91.

O propósito final do temor santo não é nos manter aterrorizados, mas nos conduzir à fé e à confiança em Cristo. Como diz o Salmo 34:11,8: “Venham, meus filhos, ouçam-me; eu lhes ensinarei o temor do Senhor… Provem e vejam como o Senhor é bom.”

O temor e a descoberta da bondade de Deus estão intimamente ligados. O processo pode ser descrito assim:

  1. O temor santo nos faz reconhecer nossa condição desesperadora como pecadores diante de um Deus santo.
  2. Este reconhecimento nos leva a buscar refúgio em Cristo, o único abrigo seguro da tempestade da ira divina.
  3. Em Cristo, descobrimos não apenas segurança, mas também a incomparável bondade e amor de Deus.
  4. Esta descoberta produz uma confiança alegre que coexiste com um profundo temor reverencial à majestade de Deus.

Esta jornada da fé – do temor à confiança – não é uma progressão que deixa o temor completamente para trás. Mesmo os cristãos maduros mantêm um temor santo como elemento permanente de sua devoção. Como diz o apóstolo Pedro: “vivam o tempo de sua peregrinação em temor” (1 Pedro 1:17, ARA).

Entretanto, este temor não é mais dominado pelo medo da condenação. Como afirma João: “No amor não há medo; pelo contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo envolve castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor” (1 João 4:18).

O que parece contraditório é, na verdade, complementar: o temor santo permanece como um elemento da devoção cristã, mas é transformado pelo amor. Tememos a Deus não porque estamos aterrorizados com a possibilidade de condenação, mas porque estamos maravilhados com sua santidade e profundamente desejosos de agradá-lo como filhos amados.

C. O Consolo Final: A Segurança em Cristo

“O temor santo é um dom que nos leva a olhar continuamente para Deus com humildade e admiração. É como uma sentinela interior, alertando-nos contra a indiferença e o pecado. Longe de nos afastar de Deus, ele nos atrai com mais força à sua presença, pois só quem teme verdadeiramente ao Senhor deseja andar em sua luz.”

Herman Bavinck, Dogmática Reformada, Vol. IV, p. 260.

Para aqueles que estão em Cristo, o temor santo se transforma em confiança inabalável. Jesus nos diz: “Não será condenado, mas já passou da morte para a vida” (João 5:24). E também: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino” (Lucas 12:32).

O teólogo puritano Thomas Watson expressou belamente esta segurança:

“Um filho de Deus teme o Senhor filialmente… Como o filho teme desagradar ao pai, mas ainda assim espera por sua herança, assim o filho de Deus teme desagradar a Deus, mas ainda assim crê que terá parte na herança celestial.”

Este é o equilíbrio perfeito: um temor santo que nos mantém humildes e alertas contra o pecado, combinado com uma confiança inabalável na obra redentora de Cristo e no amor imutável do Pai. O próprio temor, devidamente compreendido, torna-se um precioso dom de Deus – um guardião que nos protege da apostasia e nos mantém próximos do Salvador. Como João Calvino sabiamente observou nas Institutas:

“A verdadeira piedade consiste numa união sincera de reverência e amor a Deus… Deveria parecer estranho que o temor, que é uma espécie de turbação, possa entrar numa mente tranquila? Mas aqui a piedade, pela própria natureza do caso, produz sentimentos opostos.”

Portanto, permitamos que o temor santo tenha seu efeito apropriado em nós. Deixemos que ele nos conduza a Jesus, que diz a todos que nele creem: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-lhes o Reino” (Lucas 12:32).

CONCLUSÃO

“O temor de Deus é, ao mesmo tempo, um freio para o pecado e um estímulo para a piedade. Ele modera nossas paixões, regula nossas afeições e nos mantém na senda da obediência. O verdadeiro temor não afasta, mas aproxima; ele não paralisa, mas purifica.”

Joel Beeke e Mark Jones, Teologia Puritana, p. 691.

Para ilustrar a complexa relação entre o temor e a confiança em Deus, voltamos ao mundo da literatura com um episódio histórico profundamente significativo. Durante a Reforma Protestante do século XVI, Martinho Lutero enfrentou um momento de crise espiritual conhecido como Anfechtungen – períodos de profunda angústia espiritual e terror diante da santidade e justiça de Deus. Em seus próprios escritos, Lutero confessa que chegou a odiar a expressão “justiça de Deus”, pois a entendia apenas como a justiça pela qual Deus pune os pecadores.

Foi então que, estudando a carta aos Romanos, Lutero teve uma revelação transformadora que mudou não apenas sua vida, mas toda a história da igreja. Ele percebeu que a justiça mencionada em Romanos 1:17 não era primariamente a justiça pela qual Deus condena, mas a justiça que Ele concede como dom aos que creem. Nas palavras do próprio Lutero:

“Noite e dia eu ponderava até que vi a conexão entre a justiça de Deus e a declaração de que ‘o justo viverá pela fé’. Então compreendi que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive pelo dom de Deus, a saber, pela fé. Comecei a entender que esta justiça de Deus é revelada passivamente, pela qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, conforme está escrito: ‘O justo viverá pela fé’. Imediatamente senti como se tivesse nascido de novo e entrado no paraíso pelos portões abertos.”

Esta experiência de Lutero encapsula perfeitamente a jornada espiritual que todos nós devemos fazer: do terror diante da justiça divina à alegre confiança no Deus que justifica o ímpio pela fé. O mesmo Deus que legitimamente poderia nos condenar é o que graciosamente nos salva em Cristo.

O paradoxo do temor santo não é algo a ser resolvido ou superado, mas apropriadamente vivido. A tensão entre temer a Deus e confiar inteiramente nEle não é um problema teológico a ser eliminado, mas o fundamento para uma espiritualidade autenticamente bíblica. Em Mateus 10:26-31, Jesus não está se contradizendo ao nos mandar temer a Deus e, logo em seguida, confiar no cuidado paternal divino. Ele está nos conduzindo à única postura espiritual adequada diante do Deus que é simultaneamente santo e amoroso, justo e misericordioso.

O escritor C.S. Lewis captou esta verdade em sua afirmação de que Aslam não é um leão “seguro”, mas é bom. Da mesma forma, nosso Deus não é “seguro” no sentido de que podemos tratá-lo com casualidade ou presunção. Ele é o Deus santo diante de quem até os serafins cobrem seus rostos. No entanto, Ele é infinitamente bom, e aqueles que se refugiam em Cristo descobrem que o mesmo Deus que poderia justamente destruir alma e corpo no inferno é o Pai amoroso que conta até os cabelos de nossas cabeças.

“O conhecimento da santidade de Deus não nos afasta, mas nos atrai para uma adoração mais profunda. Os serafins que cobrem o rosto diante da glória divina são, ao mesmo tempo, os que louvam incessantemente. O verdadeiro temor de Deus nos lança aos Seus pés em reverência, mas também nos ergue em esperança.”

Jonathan Edwards, Afeições Religiosas, p. 110.

Que possamos aprender a viver neste paradoxo divino, temendo a Deus em reverência profunda enquanto confiamos inteiramente em seu amor imutável revelado em Cristo. Como o salmista, que possamos dizer: “Mas em ti há perdão, para que sejas temido” (Salmo 130:4).

APLICAÇÃO

O estudo de hoje sobre o temor santo e a confiança em Deus não deve permanecer meramente no campo das ideias teológicas. Estas verdades devem moldar profundamente nossa devoção e prática cristã diária. Como, então, aplicamos estas verdades à nossa vida?

Primeiramente, reconheçamos que o temor santo deve nos levar a uma profunda reverência nas nossas interações com Deus. Nossa adoração, oração e estudo da Palavra devem ser marcados não por uma casualidade desrespeitosa, mas por um senso de admiração e reverência diante da majestade divina. Como diz Hebreus 12:28-29: “Portanto, já que estamos recebendo um Reino inabalável, sejamos agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso ‘Deus é fogo consumidor’.” Esta reverência não diminui nossa intimidade com Deus, mas a aprofunda, tornando-a mais rica e genuína.

Em segundo lugar, o temor santo deve produzir em nós um profundo ódio ao pecado. Se compreendemos verdadeiramente o quão ofensivo é o pecado para Deus – tão ofensivo que mereceria o castigo eterno – devemos reagir a ele com a mesma aversão. Como Paulo adverte: “Assim, não reine o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões” (Romanos 6:12, ARA). O temor de Deus nos faz levar a sério as admoestações bíblicas contra o pecado, não por medo servil, mas por amor ao nosso Deus santo.

Terceiro, a compreensão do paradoxo entre temor e confiança deve nos levar a uma profunda gratidão pela obra salvífica de Cristo. O fato de que Deus mesmo, em Cristo, absorveu a ira que nós merecíamos deve produzir em nossos corações uma inexprimível gratidão. Como expressa o autor anônimo de Hebreus: “Por isso, visto que estamos recebendo um reino inabalável, sejamos agradecidos e, assim, adoremos a Deus de modo aceitável, com reverência e temor” (Hebreus 12:28). A gratidão e o temor santo andam de mãos dadas.

Quarto, a confiança no cuidado paternal de Deus deve nos libertar da ansiedade e do medo das circunstâncias mundanas. Jesus enfatizou que se Deus cuida até dos pardais, quanto mais cuidará de nós! Esta verdade deve transformar radicalmente nossa perspectiva sobre as preocupações diárias. Como Pedro nos exorta: “Lancem sobre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês” (1 Pedro 5:7). Quando verdadeiramente confiamos no cuidado soberano de Deus, podemos enfrentar até mesmo as circunstâncias mais desafiadoras com serenidade e esperança.

Quinto, o temor santo deve nos motivar a compartilhar o evangelho com urgência e compaixão. Se realmente acreditamos nas advertências de Jesus sobre o inferno e no convite amoroso ao reino, não podemos permanecer silenciosos. Paulo confessa: “Visto que conhecemos o temor do Senhor, procuramos persuadir os homens” (2 Coríntios 5:11). O temor santo não nos paralisa com medo, mas nos impulsiona a proclamar a boa notícia da salvação àqueles que ainda estão sob a ira de Deus. Fazemos isso não com arrogância ou condenação, mas com humildade e compaixão, reconhecendo que nós mesmos fomos resgatados unicamente pela graça.

Sexto, como comunidade cristã, devemos cultivar uma cultura onde o temor santo e a alegre confiança sejam vividos em equilíbrio. Nossas igrejas não devem ser nem lugares de terror religioso nem de trivialidade espiritual. Em vez disso, devem ser comunidades onde a santidade de Deus é reverenciada e seu amor é celebrado, onde o pecado é tratado com seriedade e a graça é oferecida abundantemente, onde a disciplina é exercida quando necessário e a restauração é sempre o objetivo.

Por fim, precisamos compreender que o temor santo não é um estágio inicial da vida cristã que eventualmente superamos, mas uma dimensão permanente de nossa relação com Deus. Como diz Pedro aos cristãos maduros: “E, se invocais como Pai aquele que, sem acepção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (1 Pedro 1:17, ARA). O temor santo não é incompatível com a maturidade espiritual; é, na verdade, uma de suas marcas.

Que o Espírito Santo use o mandamento paradoxal de Jesus – “tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno… Não tenham medo; vocês valem mais do que muitos pardais!” – para nos transformar em cristãos que vivem em reverente temor e alegre confiança, à glória de nosso Deus santo e amoroso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  1. CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
  2. BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. Volume IV. São Paulo: Cultura Cristã, 2020.
  3. BEEKE, Joel; JONES, Mark. Teologia Puritana: Doutrina para a Vida. Editora Cultura Cristã, 2020.
  4. CHARNOCK, Stephen. Discourses upon the Existence and Attributes of God, Vol. 2. Grand Rapids: Baker Book House, 1996.
  5. EDWARDS, Jonathan. Pecadores nas Mãos de um Deus Irado. São Paulo: Fiel, 2003.
  6. EDWARDS, Jonathan. Obras Escolhidas de Jonathan Edwards, Volume 2. São Paulo: PES, 2002.
  7. FLAVEL, John. The Fear of God. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 1986.
  8. HORTON, Michael. Doutrinas da Fé Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.
  9. LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
  10. LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, Vol. 1: Os Primórdios – Escritos de 1517 a 1519. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
  11. OWEN, John. The Mortification of Sin. Edinburgh: Banner of Truth Trust, 2004.
  12. PIPER, John. Deus é o Evangelho: Meditações sobre o amor de Deus como dom de si mesmo. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
  13. PIPER, John. Não Desperdice Sua Vida. São Paulo: Cultura Cristã, 2007.
  14. SPROUL, R.C. O Caráter de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
  15. STOTT, John. A Cruz de Cristo. São Paulo: ABU Editora, 1999.
  16. WATSON, Thomas. O Corpo da Teologia Divina. São Paulo: PES, 2012.

Meu chamado para o ministério pastoral veio em 1994, sendo encaminhado ao conselho da Igreja Presbiteriana (IPB) em Queimados e em seguida ao Presbitério de Queimados (PRQM). Iniciei meus estudos no ano seguinte, concluindo-os em 1999. A ordenação para o ministério pastoral veio em 25 de junho de 2000, quando assumi pastoreio na IPB Inconfidência (2000-2003) e da IPB Austin (2002-2003). Desde de 2004 tenho servido como pastor na Igreja Presbiteriana em Engenheiro Pedreira (IPEP), onde sigo conduzido esse amado rebanho pela graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Sou casado há 22 anos com Alexsandra, minha querida esposa, sou pai de Lisandra e Samantha, preciosas bênçãos de Deus em nossas vidas. Me formei no Seminário Teológico Presbiteriano Ashbel Green Simonton, no Rio de Janeiro, e consegui posteriormente a validação acadêmica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pela bondade de nosso Senhor, seguimos compartilhando fé, amor e buscando a cada dia crescimento espiritual. Somente Cristo!

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